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Padres da Igreja
Dionísio Areopagita - A Hierarquia Celeste

A HIERARQUIA CELESTE

(São Dionísio Areopagita)

CAPÍTULO I

 1 "Todo dom excelente e toda a dádiva perfeita vem do alto, desce do Pai das luzes" (Tg. 1, 17). Mais ainda, a Luz procede do Pai, difunde-se copiosamente sobre nós e com o seu poder unificante nos atrai e nos conduz ao alto. Faz-nos retornar à unidade e à deificante simplicidade do Pai, congregados nEle. "Porque dEle e para Ele são todas as coisas", como diz a Escritura.


2. Invoquemos, pois, a Jesus, a Luz do Pai, "a luz verdadeira que vindo a este mundo, ilumina a todo homem" (Jo. 1, 9), "por quem obtivemos acesso" (Rom. 5, 2; Ef. 2, 18; 3, 12) ao Pai, à luz que é fonte de toda a luz. Fixemos o olhar o melhor que pudermos nas luzes que os Padres nos transmitem pelas Sagradas Escrituras. Tanto quanto nos seja possível, estudemos as hierarquias dos espíritos celestes conforme a Sagrada Escritura nos revelou de modo simbólico e anagógico. Fixemos atentamente o olhar imaterial do entendimento na luz transbordante mais que fundamental, que se origina do Pai, fonte da Divindade. Por meio de figuras simbólicas, ilustra-nos sobre as bem-aventuradas hierarquias dos anjos. Elevemo-nos, porém, sobre esta profusão luminosa, até o puro Raio de Luz em si mesmo.


De fato, este Raio de Luz não perde nada de sua própria natureza, nem de sua íntima unidade. Ainda quando atua e se multiplica exteriormente, como é próprio de sua bondade, para enobrecer e unificar os seres que estão sob a sua providência, permanece, no entanto, interiormente estável em si mesmo, absolutamente firme, em imóvel identidade. Dá a todos, na medida de suas forças, poder para elevar-se e unir-se a Ele segundo sua própria simplicidade.

Porém este Raio divino não poderá iluminar-nos se não estiver espiritualmente velado na variedade das sagradas figuras, acomodadas ao nosso modo natural e próprio, segundo a paternal providência de Deus.           

    3. Pelo que nossa sagrada hierarquia foi estabelecida por disposição divina imitando as hierarquias celestes que não são deste mundo. Mas as hierarquias imateriais se revestiram de múltiplas figuras e formas materiais para que, conforme a nossa maneira de ser, nos elevemos analogicamente a partir destes sinais sagrados até a compreensão das realidades espirituais, simples, inefáveis. Nós, os homens, não poderíamos de nenhum modo elevar-nos por via puramente espiritual a imitar e contemplar as hierarquias celestes sem a ajuda de meios materiais que nos guiem conforme requer nossa natureza.

Qualquer pessoa, ao refletir, dá-se conta de que a beleza aparente é sinal de mistérios sublimes. O bom odor que sentimos manifesta a iluminação intelectual. As luzes materiais são imagens da copiosa efusão da luz imaterial. As diferentes disciplinas sagradas correspondem à imensa capacidade contemplativa da mente. As ordens e os graus daqui debaixo simbolizam as harmoniosas relações do Reino de Deus. A recepção da Sagrada Eucaristia é sinal da participação em Jesus, e o mesmo sucede com os seres no Céu que de modo transcendente recebem os dons que nos são dados simbolicamente.

A fonte da perfeição espiritual nos forneceu imagens sensíveis que correspondem às realidades imateriais do Céu, pois cuida de nós e quer fazer-nos à sua semelhança. Deu-nos a conhecer as hierarquias celestes; instituíu o colégio ministerial de nossa própria hierarquia à imitação da celeste, tanto quanto era possível, em seu divino sacerdócio. Revelou-nos tudo isto por meio das santas alegorias contidas nas Sagradas Escrituras, para elevar-nos espiritualmente desde o sensível e conceitual, através dos símbolos sagrados, até o cume simplíssimo daquelas hierarquias celestes.               

  CAPÍTULO II                                                                                              

 1. Antes de tudo, creio dever expor qual é o principal objeto de toda a hierarquia, e em que sentido é proveitosa aos seus membros. Em seguida, exporei as hierarquias celestes, segundo o que nos revelou a Sagrada Escritura. Por último, descreveremos sob que formas sagradas a Escritura representa as ordens celestes, pois através destas figuras devemos elevar-nos a uma perfeita simplicidade.

Não podemos imaginar, como faz o vulgo, aquelas inteligências celestes com muitos pés e rostos, de forma parecida a bois ou como leões selvagens. Não possuem bicos curvos de águias, nem asas ou penas de pássaros. Não as imaginemos como rodas de fogo pelo céu, tronos materiais nos quais senta-se a Divindade (Dn. 7, 9; Ap. 4, 2), cavalos de várias cores (Zac. 1, 8; 6, 2; Apoc. 6, 1-9), capitães brandindo espadas (Jos. 5, 13) ou qualquer outra forma em que as Santas Escrituras no-las tenham representado em variedade de símbolos. A teologia utiliza-se de imagens poéticas ao estudar estas inteligências, que carecem de figuras. Porém, como fica dito, o faz em atenção à nossa própria maneira de entender; serve-se de passagens bíblicas colocadas ao nosso alcance, em forma anagógica, para elevar-nos mais facilmente ao espiritual.                                                                                

 2. Estas figuras se referem a seres tão espirituais que não podemos conhecê-los nem contemplá-los. Figuras e nomes de que se valem as Escrituras são inadequados para representar tão santas inteligências. De fato, poderia objetar-se que se os teólogos tivessem querido dar forma corporal ao que é absolutamente incorpóreo, deveriam ter começado com os seres tidos como os mais nobres, imateriais e transcendentes, em vez de se utilizarem de múltiplas formas terrenas, ínfimas, para aplicá-las a realidades divinas, que são totalmente simples e celestes. Quem sabe o façam com intenção de elevar-nos e não de rebaixar o celeste com imagens inadequadas. Na realidade, é uma ofensa indigna aos poderes divinos e induz nossa inteligência ao êrro, confundindo-a com estas composições profanas. Alguém poderia facilmente imaginar que acima dos céus haveria uma multidão de leões e de cavalos, que os louvores seriam mugidos, que ali voariam bandos de pássaros, ou que os céus estariam cheios de outros gêneros de animais, matérias vis e semelhantes desatinos que descrevem, até o absurdo, a corrupção e as paixões.

Porém se alguém investigar a verdade, colocará em evidência a sabedoria das Escrituras. Nelas há um providencial cuidado em não ofender os poderes divinos quando representam com figuras as inteligências celestes. Com a mesma solicitude evitam que nos afeiçoemos desordenadamente aos símbolos que contenham algo de baixeza e vulgaridade. Quanto ao mais, há duas razões para que se represente com imagens o que não tem figura e para dar corpo ao incorpóreo. Primeiramente, porque somos incapazes de elevar-nos diretamente à contemplação mental. Necessitamos de algo que nos seja conatural, metáforas sugestivas das maravilhas que escapam ao nosso conhecimento. Em segundo lugar, é muito conveniente que para o vulgo permaneçam veladas, com enigmas sagrados, as verdades que contém sobre as inteligências celestes. Nem todos são santos e a Sagrada Escritura adverte que não convém a todos conhecer estas coisas (I Cor. 8, 7; Mt. 13, 11; Lc. 8, 10).

Em relação à inconveniência das imagens bíblicas, ou ao uso de comparações tão baixas para significar hierarquias tão dignas e santas, esta objeção pode ser respondida dizendo que a revelação divina apresenta-se de duas maneiras.
                  

 3. Uma procede naturalmente por meio de imagens semelhantes ao que significam. A outra emprega figuras dessemelhantes até a total desigualdade e ao absurdo. Ocorre algumas vezes que as Escrituras, em seus misteriosos ensinamentos, representam a adorável santidade de Deus "Verbo" (Jo. 1, 1), "Inteligência" (Is. 40, 13) e "Essência" (Ex. 3, 14). Fazem ver que a racionalidade e a sabedoria são atributos convenientes a Deus, a quem devemos c onsiderar real subsistência e causa verdadeira da subsistência de todos os seres. Mais ainda, representam-no como Luz (I Jo. 1, 15) e chamam-no Vida (Jo. 11, 25).

Estas formas sagradas certamente mostram mais reverência e parecem superiores às representações materiais. Não são, entretanto, menos deficientes que as outras em relação à Deidade, que está mais além de qualquer manifestação do ser e da vida. Nenhuma luz pode expressá-la e toda razão ou inteligência não chega nem a assemelhar-se-lhe.

Ocorre por isto que as mesmas Escrituras enaltecem a Deidade com expressões totalmente dessemelhantes. Chamam-na de invisível, infinita, incompreensível e de outras coisas que dão a entender não o que é, mas o que não é. Esta segunda maneira, segundo o meu entender, é muito mais própria ao falar de Deus pois, como a secreta e sagrada tradição nos ensina, nada do que existiu se parece com Deus e desconhecemos sua supraessência invisível, inefável, incompreensível (Col. 1, 15; I Tim. 1, 17; Heb. 11, 27).

Posto que a negação parece ser mais apropriada para falar de Deus, e a afirmação positiva é sempre inadequada para o mistério inexpressável, convém melhor referir-se ao invisível por meio de figuras dessemelhantes. Pelo qual, as Sagradas Escrituras, longe de desprezar as hierarquias celestes, enaltecem-nas com figuras totalmente dessemelhantes. Deste modo, realmente damos-nos conta de que aquelas hierarquias, tão distantes de nós, transcendem toda materialidade.

Quanto ao mais, não creio que nenhuma pessoa sensata deixe de reconhecer que as dessemelhanças servem melhor que as semelhanças para elevar nossa mente ao reino do espírito. Figuras muito nobres poderiam induzir alguns ao êrro de pensar que os seres celestes são homens de ouro, luminosos, radiantes de beleza, suntuosamente vestidos, inofensivamente chamejantes, ou sob outras formas como estas com que a teologia tem representado as inteligências celestes (Dan. 10, 5; Mt. 28, 3).

Para evitar estes mal entendidos entre pessoas incapazes de elevar-se acima da beleza que os sentidos percebem, piedosos teólogos, sabia e espiritualmente, condescenderam com o uso de símbolos dessemelhantes. Agindo assim eles frearam nossa tendência natural ao material e o desejo de satisfazer-nos preguiçosamente com imagens de baixa qualidade. Com isto favoreceram a elevação da parte superior da alma, que sempre anela as coisas do alto. De fato, a tosquidade destes símbolos serve de estímulo para que até os afeiçoados às coisas terrenas não possam julgar verossímil nem possível a semelhança destas coisas triviais com as celestes. Por outro lado, em todas as coisas há algo de beleza, como diz corretamente a Escritura: "Tudo é muito bom" (Gen. 1, 31).                              

 4. Todas as coisas podem favorecer a contemplação. Conforme dizia antes, as dessemelhanças com o mundo podem aplicar-se a estes seres que são simultaneamente inteligíveis e inteligentes. Tenha-se, porém, sempre em conta a diferença que há entre o que cai sob o domínio dos sentidos e do próprio entendimento. Assim, nas criaturas irracionais a cólera nasce de um impulso apaixonado de movimento irascível, mas deve-se entendê-lo de modo diverso quando se trata de quem desfruta da razão. Neste caso a cólera é, creio eu, a firme atuação da razão e a capacidade de perseverar com tenacidade em princípios santos e imutáveis.

De modo semelhante a concupiscência. Nos irracionais é uma busca ilimitada de bens materiais sob o impulso do instinto ou do costume de afeiçoar-se ao passageiro, apetite irracional dominador que induz os viventes a possuir qualquer coisa prazerosa aos sentidos. Porém quando o aplicamos ao ser inteligente, devemo-lo entender de outro modo. Dizemos que sentem desejos, mas isto significa o anelo divino da Realidade imaterial, que está além de toda razão e de toda a inteligência. É o firme e constante desejo de contemplar pura e impassivelmente a Supraessência. Fome espiritual insaciável e verdadeira comunhão com a luz imaculada e sublime, de esplêndida e inefável beleza. Intemperança que será o ardor perfeito, inquebrantável, manifesto no anelo constante da beleza divina, a total entrega ao verdadeiro objeto de todo desejo.

Dizemos que são irracionais os animais e os objetos, porque falta-lhes a razão; aos objetos, falta-lhes também a sensação. Porém quando o dizemos dos seres imateriais, intelectuais, entende-se sob o aspecto da santidade. São criaturas que transcendem em muito a nossa razão corporal discursiva, como a inteligência ultrapassa as sensações materiais. Portanto, podemos servir-nos retamente de figuras, tomadas inclusive da matéria vil, em relação aos seres celestes. Finalmente, as coisas terrenas subsistem graças à Beleza absoluta que contém dentro de sua condição material. Pela matéria podemos elevar-nos até os arquétipos imateriais. Porém deve-se ter cuidado especial para usar devidamente as semelhanças e dessemelhanças. Não se pode estabelecer uma relação de identidade mas, considerando a distância entre os sentidos e o entendimento, acomodar-se-ão segundo corresponda a cada qual.

 5. Veremos que os teólogos místicos servem-se disto para falar das hierarquias celestes e também para explicar os mistérios da Deidade. Às vezes celebram-na com imagens muito eloqüentes; por exemplo, quando dizem Sol de Justiça (Mal. 4, 2; Sab. 5, 6), Estrela Matutina que se levanta até a Inteligência (II Pe. 1, 19; Apoc. 22, 16), Luz de fulgor intelectual (I Jo. 1, 5; Mt. 5, 14). Em outros casos utilizam-se de expressões mais terrenas. Comparam Deus com o fogo que arde sem queimar (Ex. 3, 2; Sab. 18, 3; Ex. 13, 21), com a água que comunica plenitude de vida, que metaforicamente chega às entranhas e forma rios inesgotáveis (Jo. 4, 14; Jo. 7, 38; Prov. 18, 4). Utilizam também semelhanças de coisas ordinárias, como ungüento suave (Cant. 1, 3; Is. 61, 1; Jer. 1, 5; Atos 10, 36), pedra angular (Is. 28, 16; Ef. 2, 20). Chegam até a comparações de animais. Atribuem a Deus propriedades do leão, da pantera, do leopardo, e do urso devorador (Is. 31, 4; Os. 5, 14; 13, 7). Acrescente-se o que parece mais abjeto e impróprio de tudo, a forma de verme (Sl. 22, 6), com a qual representaram a Deus admiráveis intérpretes dos mistérios divinos.

Deste modo os que conhecem sobre Deus, intérpretes sob misteriosa inspiração, não misturam o Santo dos santos com coisas perfeitas e profanas. Utilizam uma figura dessemelhante para que as realidades divinas não se confundam com as imundas nem os fervorosos admiradores dos símbolos divinos se apeguem a tais figuras como se tivessem uma existência real. Assim, com verdadeiras negações e com dessemelhanças, últimos reflexos divinos, honram a Deus como é devido.

Nada, portanto, há de indigno em representar os seres celestes, como ficou dito, por meio de semelhanças ou dessemelhanças inadequadas ao objeto.

Em minha investigação ordinária esta dificuldade não me teria estimulado a chegar a uma explicação exata das virtudes sagradas se não tivesse tido problemas com as imagens da Escritura, disformes em relação aos anjos. Minha mente não podia satisfazer-se com este inadequado imaginário. Esta inquietação me conduziu a ir mais além da representação material, passando santamente pelas aparências e através delas elevando-me a realidades que não são deste mundo.

Porém seja suficiente o que já foi dito sobre as imagens materiais e impróprias com que as Escrituras Sagradas se referem aos anjos. Devo explicar agora o que entendo por hierarquia e que vantagens oferece aos que dela participam. Que nesta exposição o meu guia seja Cristo, meu Cristo, se é lícito assim falar, o inspirador de tudo o que podemos conhecer sobre a hierarquia, e tu, meu filho, deves seguir as recomendações de nossa tradição hierárquica. Escuta devotamente estas sagradas e inspiradas considerações e esta doutrina te servirá de iluminação. Guarda as santas verdades no recôndito de tua alma. Preserva sua unidade diante da multiplicidade do profano (I Tim. 6, 20) pois, como diz a Escritura, não é lícito atirar aos porcos a pura, brilhante e esplêndida harmonia das pérolas espirituais (Mt. 7, 6).

CAPITULO III

1. Em meu julgamento, hierarquia é uma ordem sagrada, um saber e atuar o mais próximo possível da Deidade. Elevam-se a imitar a Deus proporcionalmente às luzes que dEle recebem. A Beleza de Deus tão simples, tão boa, origem de toda a perfeição, não admite em si a menor dessemelhança. Dispensa a todos, segundo o mérito de cada um, sua luz e aperfeiçoa-os revestindo-os misteriosa e estavelmente de sua própria forma.

2. A hierarquia, portanto, tem como fim conduzir as criaturas, tanto quanto seja possível, à semelhança e união com Deus. Uma hierarquia tem a Deus como mestre de todo saber e ação. Não deixa de contemplar sua diviníssima beleza. Leva em si a marca de Deus. Faz com que seus membros sejam imagens dEle sob todos os aspectos, espelhos transparentes e sem mancha (Sab. 7, 26), refletindo o brilho da luz primeira e de Deus mesmo. Assim que seus membros tenham recebido a plenitude de seu divino esplendor, transmitem generosamente a luz, conforme ao plano de Deus, a aqueles que os seguem na escala.

Seria grave êrro para os santos guias, assim como para aqueles que aprendem deles, fazer algo contra as disposições sagradas daquele que, em última análise, é a fonte da perfeição. A desobediência, especialmente para aqueles que anelam o divino esplendor de Deus e fixaram para sempre o olhar naquele fulgor, seria um êrro. É o que convém ao seu caráter sagrado, e mais, se estão configurados, na medida de suas forças, com aquela luz.

Assim é que o nome de hierarquia designa uma disposição sagrada, imagem da beleza de Deus, que representa os mistérios da própria iluminação, graças à ordem sagrada de seu grau e de seus saberes. Assemelha-se à própria fonte e, na medida do possível, configura-se com sua própria origem. Porque a perfeição de cada um dos que estão nesta sagrada ordem consiste principalmente em que, segundo a própria capacidade, tenda à imitação de Deus. Mais admirável ainda, chega a ser, como diz a Escritura, "cooperador de Deus" (I Cor. 3, 9; I Tess. 3, 2) e reflexo da atividade divina na medida do possível.

Por isso, quando a ordem sagrada dispõe que uns sejam purificados e outros purifiquem, uns sejam iluminados e outros iluminem, uns sejam aperfeiçoados e outros aperfeiçoem, cada um imitará a Deus de fato segundo o modo que convenha à sua função própria. O que nós chamamos bem-aventurança de Deus é livre de toda dessemelhança. É plena de luz, sempiterna, perfeita, sem que lhe falte nada. Ela é a que purifica, ilumina e aperfeiçoa. Ou melhor, é a santa purificação, iluminação, perfeição. Está acima de toda purificação, acima de toda iluminação; é a verdadeira fonte de perfeição, mais que perfeita. Causa de toda a hierarquia, ultrapassa em muito todo o sagrado.

3. Em meu parecer, os já purificados estão perfeitamente limpos de toda mancha e livres da menor dessemelhança. Creio que todos os que recebem a iluminação sagrada estão cheios de luz divina e levantam os santos olhos da mente até alcançar plena capacidade de contemplação. Finalmente, penso que os perfeitos, longe já de toda imperfeição, devem unir-se aos que contemplam os santos mistérios com ciência perfeccionante.

Justo é que os que purificam façam participar a outros de sua abundante pureza. É justo também que os que iluminam, mentes mais transparentes do que as outras, gozosamente plenos de sagrado fulgor e capazes tanto de receber como de transmitir a luz, a transbordem em todo lugar e a difundam entre os que sejam dignos dela. Por último, penso que os que têm o ofício de criar perfeição, muito entendidos na doutrina perfeccionante, devem fazer que os perfeitos cheguem a ser como eles, instruindo-os na doutrina sagrada do que já contemplam devotamente.

Resulta, portanto, que cada ordem da hierarquia sagrada, segundo o correspondente a cada uma, eleva-se até a cooperação com Deus. Com a graça e o poder que Deus concede faz coisas que naturalmente são próprias da Deidade. Algo que Ele realiza supraessencialmente e em seguida o revela pela hierarquia às inteligências que amam a Deus, para que estas o imitem dentro do possível.

CAPÍTULO IV

1. Creio já ter explicado o que entendo por hierarquia e devo, por isso, entoar um hino de louvor às hierarquias angélicas. Com olhos que vejam mais além do mundo, contemplarei as figuras sagradas que as Escrituras lhes atribuem para que, através destas místicas representações, possamos elevar-nos até a simplicidade de Deus. Então, com a devida adoração e ação de graças, glorificaremos a Deidade, fonte de tudo o que podemos conhecer das hierarquias.

Antes de tudo, devemos afirmar esta verdade: a Deidade supraessencial estabeleceu a essência de todas as coisas e lhes deu a existência. É próprio da Causa universal, Bondade suprema, chamar à comunhão consigo todas as coisas na medida em que for a estas possível. Por isso todo ser participa de certo modo da Providência que vem da Deidade supraessencial, Causa de tudo. Na realidade, nada pode existir sem que dependa de algum modo daquele que é fonte de todo ser. DEle participam as coisas inanimadas pelo mero fato de existirem, pois todo ser deve a própria existência à Deidade transcendente. Os viventes, por sua vez, participam do poder que dá a vida e que ultrapassa toda a vida. Os seres dotados de razão e inteligência participam da Sabedoria, perfeição absoluta, primordial, que ultrapassa toda razão e inteligência. Fica claro, portanto, que estes últimos seres estão mais próximos a Deus porque compartilham com Ele de muitas maneiras.

2. Comparadas com as coisas que se limitam a existir, com os seres de vida irracional, e inclusive com nossa natureza racional, as santas ordens de seres celestes são evidentemente superiores pelo que receberam da prodigalidade divina. Quanto ao modo de conhecer, parecem-se a Deus. Com Ele conformam suas inteligências. Por isso entram naturalmente em maior comunhão com a Deidade, porque estão sempre direcionados às alturas, porque na medida do possível tendem a concentrar-se no indeficiente amor de Deus, porque de modo imaterial e em toda a pureza recebem a luz diretamente de sua origem, e porque sua vida, guiada por semelhante luz, é plenamente inteligente.

Estas inteligências são as que mais rica e intimamente participam de Deus, e por sua vez são as primeiras e mais abundantes em transmitir aos demais os mistérios escondidos da Deidade. Pelo que corresponde-lhes mais do que a ninguém o título de anjo ou mensageiro. São os primeiros a receber a iluminação de Deus e por meio deles se nos transmitem as revelações que excedem sobremaneira nosso alcance. Conforme diz a Escritura, a Lei nos foi dada pelos anjos (Atos 7, 38-53; Gal. 3, 19; Heb. 2, 2). Em tempos anteriores e depois da Lei foram anjos os que guiaram até Deus nossos ilustres antepassados. Faziam-no manifestando-lhes o que deviam fazer ou afastando-os do erro e da vida de pecado para trazê-los ao caminho reto da verdade. As sagradas hierarquias também lhes revelavam visões de mistérios escondidos a este mundo, ou divinas profecias (Ex. 23, 20-23).

3. Talvez alguém diga que Deus apareceu sem intermediários a alguns santos. Deve saber que as Santas Escrituras afirmam claramente que "ninguém jamais viu a Deus" (Jo. 1, 18; Ex. 33, 30-23; I Tim. 6, 16; I Jo. 4, 12), e nunca ninguém verá o mais recôndito da Deidade. É certo que Deus apareceu a pessoas santas. Deste modo era conveniente que a Deidade se acomodasse à maneira de ser dos videntes. A sagrada teologia chama com razão teofania às visões em que Deus, que não tem figura, se manifesta em determinada semelhança e forma. Dispõe aos videntes para um plano divino. Recebem iluminação de Deus e de algum modo são instruídos sobre os mistérios divinos. Foi o poder de Deus quem dispôs os nossos antepassados para vê-lo desta maneira (Gen. 17, 1; 18, 1; Gen. 18, 10; 32, 23; Ex. 24, 9-11; 33, 19-23; Is. 6, 1-8).

Não afirma a Escritura que Moisés recebeu diretamente de Deus as sagradas ordenações da Lei (Ex. 19, 3-14; 20, 19; 24, 9-11; 25-31; 33, 12-17; 34, 9-10)? Assim podia ensinar-nos com verdade que aquela legislação era cópia exata do divino e sacrossanto. Porém a teologia nos mostra claramente que estas divinas ordenações nos foram dadas por meio dos anjos para que aprendamos a mesma ordem estabelecida por Deus, isto é, que mediante as hierarquias superiores os seres inferiores elevam-se à Deidade. Ora, na Lei dada por Ele que é princípio supraessencial de toda ordem há disposições que afetam não apenas aos graus superiores e inferiores daquelas inteligências. Ela estabelece, ademais, que dentro de cada hierarquia as ordens e potências se distribuem em três graus: o primeiro, o médio e o último, e que os mais próximos à Deidade devem instruir aos menos próximos, guiando-os até a presença de Deus, sua iluminação e comunhão.

4. Observo também que o divino mistério do amor de Jesus aos homens foi primeiramente manifestado aos anjos e por meio deles chegou a nós a graça do seu conhecimento. Foi o santíssimo Gabriel quem declarou ao sacerdote Zacarias o mistério segundo o qual, contra toda a esperança e pela graça de Deus, ele teria um filho que seria o profeta da obra divino-humana de Jesus, o qual iria manifestar-se para o bem e a salvação do mundo (Lc. 1, 11-20). Gabriel comunicou a Maria como se cumpriria nela o mistério divino da inefável deiformação (Lc. 1, 26-39). Outro anjo explicou a José que verdadeiramente se haviam cumprido as promessas feitas a seu antepassado Davi (Mt. 1, 20-25; II Sam. 7, 12-17). Outro, igualmente, levou a boa nova aos pastores que por sua vida tranqüila e separada das gentes estavam já de algum modo purificados. Juntou-se ao anjo "uma multidão do exército celestial" para transmitir a todos os habitantes do mundo o célebre hino de louvor (Lc. 2, 8-14).

Levantemos agora o olhar às mais altas revelações das Escrituras. Observo, efetivamente, que Jesus, Causa supraessencial de todos os seres que vivem mais além do universo, veio tomar forma humana sem mudar sua própria natureza. Depois nunca abandonou a forma humana que Ele havia disposto e escolhido. Obediente, submeteu-a aos desejos de Deus Pai, os quais os anjos tornaram manifestos. Anjos foram os que instruíram a José sobre os planos do Pai para a fuga ao Egito e o retorno à Judéia (Mt. 2, 13; 19-22). O próprio Jesus recebeu ordens do Pai por meio dos anjos. Não tenho necessidade de recordar a sagrada tradição do anjo que confortou a Jesus (Lc. 22, 43; Mt. 4, 11) ou do fato que o próprio Jesus, pela superabundante bondade com que conduziu a obra de nossa salvação é enumerado entre os anjos da revelação como o nome de "Anjo do Conselho" (Is. 9, 6). Não foi Ele na verdade um anjo por ter-nos anunciado o que conheceu do Pai (Jo. 15, 15)?

CAPÍTULO V

1. Esta é, tanto quanto eu alcanço conhecer, a razão do nome anjo nas Escrituras. Porém creio agora dever perguntar por que os teólogos chamam indistintamente anjos a todos os do Céu, enquanto que, outras vezes, ao tratar das hierarquias celestes, reservam o nome de anjos para a última ordem hierárquica, a que está subordinada aos graus dos arcanjos, principados, autoridades e potências que as Escrituras reconhecem superiores.

Em todas as hierarquias sagradas o grau superior de cada ordem possui as iluminações e poderes das que lhes estão subordinadas, porém estas não têm as próprias dos superiores. Os teólogos (Sl. 103, 20; Mt. 25, 31; Heb. 1, 4) dão o nome de anjo também às ordens mais altas e santas entre os seres celestes pelo fato de que manifestam as iluminações procedentes da Deidade. Porém, falando concretamente da última ordem dos seres celestes, não há razão para chamar anjos aos membros dos principados, tronos ou serafins, porque os anjos não participam dos supremos poderes destes. De fato, assim como esta ordem superior eleva nossos inspirados hierarcas até onde eles conhecem da luz de Deus, as ordens de grau superior elevam a seus subordinados, os anjos, até a Deidade.

Se a Escritura emprega o mesmo nome para todos os anjos é porque os poderes celestes possuem em comum uma capacidade, inferior ou superior, para identificar-se com Deus e entrar, mais ou menos, em comunhão com a luz que dEle procede.

Mas, para esclarecer tudo isto, contemplemos com olhar puro as santas propriedades de cada ordem celeste tal como a Escritura o revelou.

CAPÍTULO VI

1. Quantas são e como se classificam as ordens celestes? Como cada uma das hierarquias alcança a perfeição? Somente aquele que é Fonte de toda a perfeição poderia responder com exatidão a estas perguntas, porém, pelo menos, elas conhecem as iluminações e os poderes próprios de cada ordem e seu lugar nesta ordem sagrada e transcendente. Pelo que nos diz respeito, não é possível conhecer o mistério das mentes celestes nem entender como alcançam a mais alta perfeição. Podemos conhecer apenas o que a Deidade nos manifestou misteriosamente por meio delas, já que conhecem bem suas propriedades. Nada, portanto, tenho a dizer por mim mesmo de tudo isto, e contento-me meramente em explicar o melhor que puder o que aprendi dos santos teólogos sobre os anjos tal como eles no-lo transmitem.

2. A Escritura enumera em nove os nomes de todos os seres celestes, e meu glorioso mestre os classificou em três hierarquias de três ordens cada uma. Segundo ele, o primeiro grupo está sempre em torno de Deus, constantemente unido e Ele, antes que todos os outros e sem intermediários. Compreende os santos tronos e as ordens dotadas de muitas asas e muitos olhos que em hebraico chamam de querubins e serafins. Conforme à tradição das Santas Escrituras estão colocados imediatamente junto de Deus e ao seu redor, mais perto que todos os demais (Is. 16, 1-7; Gen. 4, 24; Ez. 10, 1-22; Ef. 1, 21; Col. 1, 16; Jud. 1, 9). Este tríplice grupo, diz o meu célebre mestre, forma uma só hierarquia que é verdadeiramente a primeira. Seus membros gozam de igual estado. São os mais divinizados e os que recebem primeiro e mais diretamente as iluminações da Deidade (Ez. 1, 18; Is. 6, 2; Ez. 1, 6).

O segundo grupo, diz ele, é composto das potestades, dominações e virtudes. O terceiro, no final das hierarquias celestes, é a ordem dos anjos, arcanjos e principados.

CAPÍTULO VII

1. De acordo com esta ordem das sagradas hierarquias, dizemos que os nomes dados às inteligências celestes significam os modos distintos de receber a propriedade deiforme. Os que sabem hebraico reconhecem que o santo nome "serafim" significa inflamado ou incandescente, isto é, enfervorizante (Is. 6, 2-6).

O nome querubim significa plenitude de conhecimento ou transbordante de sabedoria (Gen. 3, 24; Ex. 25, 18-22; 37, 6-9; Num. 7, 89; I Sam. 4, 4; I Re. 6, 23-28; 8, 6-7; Sl. 18, 10; 80, 1; 99, 1; Is. 37, 16; Ez. 10, 3-22; Ex. 1, 4-28). Com razão, portanto, os seres mais elevados constituem a primeira hierarquia, a de mais alto grau, os mais eficientes por estarem mais próximos de Deus. Situados imediatamente ao seu redor, recebem as mais primorosas manifestações e perfeições de Deus. Por isso chamam-se "enfervorizantes" e tronos. Pelo mesmo motivo são também chamados transbordantes de sabedoria. Nomes que indicam seu constante configurar-se com Deus.

O nome serafim significa incessante movimento em torno às realidades divinas, calor permanente, ardor transbordante, em movimento contínuo, firme e estável, capacidade de gravar sua marca nos subordinados fixando e levantando neles chama e amor parecidos; poder de purificar por meio de chama e raio luminoso; aptidão para manter evidente e sem esmorecimento a própria luz e sua iluminação, poder de afugentar as trevas e qualquer sombra obscurecedora.

O nome querubim, poder para conhecer e ver a Deus; receber os melhores dons de sua luz; contemplar a divina Beleza em sua pura fonte; acolher em si a plenitude dos dons portadores de sabedoria e compartilhá-los generosamente com os inferiores, conforme ao plano benfeitor da sabedoria transbordante.

O nome dos sublimes e mais excelsos tronos indica que estão muito acima de toda a deficiência terrena, como se manifesta pela sua ascensão até os cumes; que estão sempre afastados de qualquer baixeza; que passaram a viver completa e eternamente na presença daquele que é realmente o Altíssimo; que livres de toda a paixão e cuidados materiais estão sempre prontos para receber a visita da Deidade; que são portadores de Deus e estão prontos como os servos para acolher a Ele e aos seus dons (Sl. 80, 1; 99, 1; Col. 1, 16).

2. Esta é a explicação, na medida em que podemos humanamente entendê-lo, do motivo pelo qual são e se chamam assim. Falta-me dizer o que entendo pela sua hierarquia. Creio já ter dito suficientemente que toda hierarquia tem como fim imitar sempre a Deus até configurar-se com Ele, e cumpre o ofício de receber e transmitir a purificação imaculada, a luz divina e o saber que leva à perfeição. Devo expor aqui em palavras, oxalá dignas destas inteligências superiores, o que as Sagradas Escrituras revelam de suas hierarquias.

Os primeiros seres têm seu lugar junto à Deidade, a quem devem o que são. Estão e estiveram no seu vestíbulo. Superam todo poder, visível ou invisível, que esteja submetido a mudança. Constituem uma só hierarquia completamente igual.

Temos que pensar que são totalmente puros, não porque estejam livres de qualquer mancha ou feiúra profana, nem porque imagens terrenas os sujem. São puros porque transcendem completamente toda debilidade e graus inferiores dos santos. Sua pureza suprema os coloca acima de outros poderes deiformes; faz com que adiram inquebrantavelmente a sua própria ordem movendo-se eternamente em constante amor de Deus. Não conhecem a experiência de terem-se rebaixado a coisas inferiores, pois têm como propriedade serem semelhantes a Deus, cimentos eternamente indeficientes, inamovíveis e totalmente incontaminados.

São também "contemplativos", não porque contemplem imagens sensíveis ou do entendimento, nem porque se elevem a Deus em variada contemplação das Sagradas Escrituras. São-no porque estão cheios de uma luz superior que excede todo conhecimento, e porque são invadidos por uma tríplice luz transcendente daquele que é princípio e fonte de toda a beleza. São contemplativos também porque conseguiram entrar em comunhão com Jesus, não por meio de símbolos sagrados que representem a bondade de Deus atuando desde fora, mas porque realmente têm intimidade com Ele e participam no conhecimento profundo das luzes divinas que imediatamente operam externamente. Privilégio especial de ser como Deus, na medida em que lhes é possível. Com seu poder, antes de tudo participam em Sua atuação e em suas amáveis virtudes.

São perfeitos, não pela iluminação que os capacita para entender profundamente os mistérios sagrados, mas pela plenitude de sua deificação primordial, seu transcendente e angélico conhecimento da atuação de Deus. Deus mesmo os instrui hierarquicamente por meio de outros santos seres. Puderam conseguí-lo graças à capacidade que têm de levantar-se até Ele. Poder que é a marca de superioridade sobre as demais ordens. Estão fixos junto à perfeita e indeficiente pureza e, na medida em que lhes é possível, são atraídos à contemplação da beleza imaterial e intelectual. Por ser os primeiros ao redor de Deus são hierarquicamente os mais altos. O verdadeiro Princípio de perfeição os instrui sobre as razões inteligíveis das obras de Deus.

3. Os teólogos afirmaram claramente que entre os seres celestes tudo o que as ordens inferiores conhecem das obras de Deus recebem-no em forma conveniente das superiores. No entanto, é a própria Deidade que, na medida do possível, ensina iluminando aos de grau mais elevado. Referem-nos que alguns são santamente ensinados pelos de grau superior. Alguns aprendem que o Rei da Glória, aquele que subiu aos Céus em forma humana, é o "Senhor dos poderes celestiais" (Sl. 24, 10). Outros, em suas dúvidas sobre a natureza de Jesus, adquirem conhecimento de sua obra divina com proveito da humanidade. É Jesus mesmo quem os instrui na obra que misericordiosamente levou a efeito por amor ao homem: "Eu sou o que fala em justiça, o poderoso para salvar" (Is. 63, 1).

Porém aqui há algo surpreendente. Os primeiros dos seres celestes, os superiores a todos, mostram-se circunspectos assim como os de grau intermediário quando desejam iluminação a respeito da Deidade. Não perguntam diretamente: "Por que são vermelhos os teus vestidos?" (Is. 63, 2). Começam por perguntarem-se uns aos outros, mostrando assim seus intensos desejos de aprender e de saber como são as operações de Deus. Não se antecipam ao derrame da luz com que Deus os alimenta.

Por isso, a primeira hierarquia das inteligências celestes está hierarquicamente dirigida pela Fonte de toda a perfeição, porque pode elevar-se diretamente até Ela. Recebe, segundo sua capacidade, plena purificação, luz infinita, perfeição completa. Purifica-se, ilumina-se, e aperfeiçoa-se até se tornar isenta de qualquer debilidade, saturada de pura luz. E consegue alcançar a perfeição como participante do conhecimento e da sabedoria primordial.

Em resumo, podemos dizer com razão que a purificação, iluminação e perfeição, as três são plena participação da ciência divina. Esta purifica de toda ignorância dando a cada um, segundo sua capacidade, conhecimento dos mistérios mais elevados. Ilumina com a mesma sabedoria de Deus, a qual também purifica as manchas ainda não advertidas, porém que agora são vistas, sendo a luz mais abundante. Ademais, mediante esta mesma luz, aperfeiçoa o conhecimento com fulgores mais brilhantes.

4. Esta é, segundo meus conhecimentos, a primeira hierarquia dos seres celestes, o círculo mais próximo de Deus (Is. 6, 2; Ap. 4, 4). Gira sem cessar com plena simplicidade em torno ao que é eterno conhecimento, estabilidade eternamente móvel. Para sempre e totalmente, tal como convém aos anjos. Com um só olhar, puro, pode experimentar múltiplas contemplações bem aventuradas e também receber diretamente os simples raios luminosos. Sacia-se com alimento divino, abundante, porque vem do banquete celestial. Único, porque os revigorantes dons de Deus conduzem ao Uno em unidade, sem diversidade.

Esta primeira hierarquia é particularmente digna de familiaridade com Deus e coopera com Ele. Imita, enquanto possível, a beleza do poder e atividade próprios de Deus, com elevado conhecimento de muitos mistérios divinos. Pelo que as Escrituras transmitiram aos que habitam na terra os hinos que cantam estes anjos da primeira hierarquia (Apoc. 4, 8; 6, 10; 11, 16; 11, 5; 15, 2; 19, 1-8). Desta maneira fica santamente manifesta a sua iluminação transcendente. Alguns destes hinos são, para dizê-lo com uma imagem sensível, o "ruído de um rio caudaloso" (Ez. 1, 24; Ap. 14, 2; 19, 6) quando proclamam: "Bendita seja em seu lugar a glória do Senhor" (Ez. 3, 12). Outros cantam com veneração aquele famoso hino de louvor a Deus: "Santo, Santo, Santo, Senhor dos exércitos! A terra está cheia de sua glória" (Is. 6, 3; Ap. 4, 8).

Em meu livro "Hinos Divinos" já expliquei o melhor que pude os sublimes louvores que aquelas santas inteligências cantam sobre os Céus. Creio que ali expus tudo o que convinha dizer. Pelo que diz respeito ao meu propósito, limito-me a repetir aqui que quando a primeira ordem recebeu, segundo a sua capacidade, a iluminação divina diretamente de Deus, transmite-a, como é próprio de uma hierarquia benfeitora, a seus inferiores imediatos. Seu ensinamento reduz-se a isto: É justo e bom que as inteligências deíficas, enquanto possível, conheçam e honrem à adorável Deidade, que merece todo o louvor, ainda que esteja muito acima de tudo. São estas inteligências, por viverem em conformidade com Deus, o lugar onde mora a Deidade, como diz a Escritura (Is. 66, 1; Num. 10, 36; I Cron. 6, 31; II Cron. 6, 41; Ex. 37, 7-9; I Sam. 4, 4; II Sam. 6, 2; II Re. 19, 15; Sl. 80, 1; 99, 1).

Este primeiro grupo transmite o ensinamento de que a Deidade é Unidade, Una em Três Pessoas, que sua esplêndida providência se estende desde os seres mais elevados no Céu até às ínfimas criaturas da terra. É a Causa e Fonte que transcende a fonte de todo ser e supraessencialmente atrai todas as coisas ao seu perene abraço.

CAPÍTULO VIII

1. Vou passar agora à categoria das inteligências celestes de ordem intermediária. Com os olhos do espírito contemplarei o melhor que puder as dominações e a maravilhosa visão das divinas virtudes e potestades (Ef. 1, 21; 3, 10; Col. 1. 16; 2, 10; I Pe. 3, 22; Rom. 8, 38). Cada denominação dos seres tão superiores a nós apresenta maneiras distintas de imitar a Deus e configurar-se com Ele.

O nome revelador de "dominações" significa, creio eu, um elevar-se livre e desagrilhoado de tendências terrenas, sem inclinar-se a nenhuma das tirânicas dessemelhanças que caracterizam aos duros domínios. Como não toleram nenhum defeito, estão acima de qualquer servidão. Limpas de toda dessemelhança, esforçam-se constantemente em alcançar o verdadeiro domínio e fonte de todo o senhorio. Benignamente, e segundo sua capacidade, recebem elas e seus inferiores a semelhança do Senhor. Desdenham as aparências vazias, e se encaminham totalmente ao verdadeiro Senhor. Participam o mais que podem na fonte eterna e divina de todo domínio.

A denominação de santas "virtudes" alude à fortaleza viril, inquebrantável em toda obra, ao modo de Deus. Firmeza que exclui toda preguiça e moleza, enquanto permanece sob a iluminação divina que lhes é dada, e ergue firmemente até Deus. Longe de desprezar por preguiça o impulso divino, dirige-se diretamente à potência supraessencial, fonte de toda a fortaleza. De fato, esta firmeza chega a ser, dentro do possível, verdadeira imagem da Potência de que toma forma, e à qual está firmemente orientada por ser ela a fonte de toda a fortaleza. Ao mesmo tempo transmite aos seus inferiores o poder dinâmico e divinizante.

As santas "potestades", como seu nome indica, tem o mesmo grau que as dominações e as virtudes. Estão harmoniosamente dispostas, sem confusão, para receber os dons de Deus. Indicam, ademais, a natureza ordenada do poder celestial e intelectual. Longe de abusar tiranicamente de seus poderes, causando dano aos inferiores, erguem-se até Deus harmoniosa e indefectivelmente; em sua bondade elevam consigo às ordens inferiores. Parecem-se, dentro do possível, ao poder que é fonte e autor de todo poder.

Deste modo, a hierarquia das inteligências celestes mostra sua configuração com Deus. Como fica dito, assim alcança a purificação, iluminação e perfeição, recebendo de Deus as iluminações que chegam já através da primeira ordem hierárquica.

2. Esta transmissão de uns anjos a outros simboliza a perfeição a qual, como vem de longe, vai diminuindo a sua luz ao passar da primeira à segunda ordem. Os santos mestres que nos iniciaram nos mistérios de Deus ensinam que a perfeição das realidades divinas, quando elas se revelam diretamente, é superior à participação por visões que chegam de outros modos. De igual modo, creio eu, participam mais perfeitamente de Deus os anjos que lhe são mais imediatos que os outros aos quais a participação chega por mediadores. Assim, pois, utilizando-nos dos termos tradicionais, as primeiras inteligências aperfeiçoam, iluminam e purificam às de grau inferior de tal maneira que estas, por terem sido elevadas através das primeiras até à fonte universal e supraessencial, participam, segundo sua capacidade, da purificação, iluminação e perfeição do Único que é fonte de toda a perfeição.

O princípio divino de toda ordem estabeleceu a lei universal de que os seres do segundo grupo recebam a iluminação da Deidade por meio dos seres do primeiro. Como podes comprová-lo, isto é freqüentemente afirmado pelos autores sagrados.

Deus, por amor à humanidade, corrigiu Israel para que voltasse santamente ao caminho da salvação. Entregou-o à vingança das nações bárbaras, para que se convertesse de coração. Deste modo Deus reafirmava sua vontade de levar até à perfeição aos homens colocados sob a sua especial providência. Em seguida, libertou misericordiosamente a Israel da catividade (Is. 61, 1; Lc. 4, 18), restabelecendo-o em seu primeiro estado. Zacarias, teólogo, teve uma visão a este respeito. Era um anjo da primeira ordem, um dos mais próximos de Deus, que recebia diretamente dEle o que a Escritura chama "palavras de consolo" (Zac. 1, 13). Já disse que o nome anjo é comum a todos os seres celestes. Outro anjo de grau inferior foi ao encontro do primeiro e dele recebia iluminação. Deste modo, instruído por ele como por um hierarca nos planos de Deus, o anjo por sua vez confiou ao teólogo que

"multidões voltarão outra vez a povoar plenamente Jerusalém". Zac. 2, 4

Ezequiel, outro teólogo, declara que tudo isto foi santamente disposto pela mesma Deidade que em sua glória, superior a toda a glória, tem à sua disposição os querubins (Ez. 10, 18). Deus, levado por amor paternal aos homens, queria a correção para o proveito de Israel, e com um ato de eqüidade digna dEle determinou separar os inocentes dos culpados. O primeiro a ser nisso instruído, depois do querubim, foi aquele que estava cingido com cinturão seráfico e vestia um manto até os pés em sinal de sua missão hierárquica (Ez. 9, 2; 10, 6-8). Ele, por sua vez, comunicava a decisão divina aos outros anjos, os que levavam machados (Ez. 9, 1-3). Assim cumpria as ordens da Deidade, fonte da ordem que mandava atravessar toda Jerusalém e pôr um sinal sobre a fronte dos inocentes. Disse aos outros:

"Passai pelo meio da cidade e feri. Não sejam compassivos vossos olhos, nem tenhais compaixão alguma. Porém não vos aproximeis de nenhum dos que trazem o sinal"Ez. 9, 5-6

Que dizer do que anunciou a Daniel que "a ordem está dada" (Dan. 9, 23)? Ou do primeiro que apanhou o fogo do meio dos querubins (Ez. 10, 2)? Ou do querubim que colocou fogo nas mãos do que vestia a "estola sagrada" (Ez. 10, 6-8), coisa que mostra claramente a boa ordem que existe entre os anjos? Que diremos daquele que chamou ao diviníssimo Gabriel e lhe disse:

"Explica a este a visão"? Dan. 8, 16

 E todos aqueles exemplos que mencionam os sagrados teólogos em relação à variadíssima ordem das hierarquias celestes. Nossa hierarquia tenta imitar, dentro do possível, aquela ordem e beleza angélica, configurar-se à sua imagem e elevar-se até à fonte supraessencial de toda ordem e de toda hierarquia.

CAPÍTULO IX

Falta-nos ainda contemplar a última hierarquia dos anjos, os deiformes principados, arcanjos e anjos (Ef. 1, 21; 3, 10; Col. 1, 16; 2, 10; I Cor. 15, 24; Ef. 6, 12; Col. 2, 15; I Tess 4, 16; Jud.1, 9). Creio que antes de tudo o mais devo explicar o significado destes nomes sagrados o melhor que me seja possível. O termo "principados celestes" refere-se ao mando principesco que aqueles anjos exercem à imitação de Deus. Trata-se de uma referência à ordem sagrada mais própria para exercer poderes de príncipes; à capacidade de orientar-se plenamente ao princípio que está acima de todo princípio e, como príncipes, guiar os outros até Ele. Poder de receber plenamente a marca do Princípio de princípios e, mediante o exercício eqüitativo de seus poderes de governo, dar a conhecer este supraessencial princípio de toda ordem.

  2. Os santos arcanjos têm a mesma ordem que os principados celestes e, como foi dito, juntamente com os anjos formam uma só hierarquia e ordem. Não obstante, como em cada hierarquia há três poderes, o primeiro, o intermediário e o último, a santa ordem dos arcanjos possui algo das outras duas por encontrar-se entre as extremidades. Comunica-se com os santíssimos principados e com os santos anjos; sua relação com os primeiros fundamenta-se no fato de que, como os principados, orienta-se ao Princípio supraessencial e, finalmente, em que recebe sobre si a marca do que é Princípio. A ordem dos arcanjos comunica a união aos anjos graças aos invisíveis poderes de ordenar e dispor o que recebeu do próprio Princípio.

A ordem dos arcanjos relaciona-se com os anjos por servir de intermediária para comunicar a estes as iluminações que recebem de Deus por meio das primeiras hierarquias. Os arcanjos as comunicam aos anjos e por meio destes a nós, na medida em que somos capazes de ser santamente iluminados.

Conforme já disse, os anjos completam o conjunto hierárquico das sagradas inteligências. Constituem eles o grau inferior. Dá-se o nome de anjos a este grupo, de preferência a outros, porque sua hierarquia é a mais próxima de nós, a que nos torna manifesta a revelação e a que está mais próxima do mundo. Já disse que a ordem superior, assim chamada por estar mais próxima aos mistérios divinos, influi hierarquicamente no segundo grupo, que se compõe das santas dominações, virtudes e potestades. A segunda influi sobre a hierarquia dos principados, arcanjos e anjos; é ela que faz as revelações e, segundo seus graus distintos, preside as hierarquias humanas para que a elevação e retorno a Deus, comunhão e união com Ele, ocorra como é devido. Mesmo assim, todas as hierarquias participam eqüitativamente das graças que bondosamente Deus lhes dá. Portanto, os anjos velam por nossa hierarquia humana como o refere a Escritura. Elas chamam a Miguel de príncipe do povo judeu, e designam diversos anjos para governar outras nações, porque

"o Altíssimo estabeleceu os termos dos povos segundo o número dos anjos". Dt. 32, 8; Dn. 10, 13-21; 12, 1

3. Talvez alguém pergunte por que somente o povo judeu alcançou a luz da Deidade. A isto responde-se dizendo que os anjos cumpriram perfeitamente seu ofício de guardiões e que não é falta sua se outras nações se desviaram adorando a falsos deuses. Na realidade, foram elas, por sua própria iniciativa, as que se afastaram do caminho que leva a Deus. A adoração absurda com que elas imaginavam agradar a Deus mostra seu egoísmo e sua presunção, como se prova pelo que sucedeu ao povo judeu:

"Rejeitaste a ciência" [de Deus],

está escrito,

"e seguiste o chamado de teu coração".

Os. 4, 6;

Jer. 7, 24; Os. 5, 11

Nem está necessariamente predeterminada a nossa vida, nem a liberdade é obstáculo que impeça a divina Providência de ser fonte de iluminação sobre aqueles que estão sob o seu cuidado. De fato, o que ocorre é isto. A desproporção dos olhos da inteligência faz com que, sendo copiosíssima a iluminação da bondade do Pai, ou se perca inteiramente, ou se torne inútil por rejeitá-la, ou que participem dela com desigual medida, em grande ou pequena quantidade, obscuramente ou com claridade. Enquanto isso, o refulgente manancial de luz continua sendo único e simples, sempre igual, sempre transbordante.

O mesmo pode dizer-se de outras nações, povos de onde nós somos provenientes, de maneira que podemos também levantar o olhar ao pélago infinito e generoso desta Luz divina, que derrama e difunde seus dons sobre todos os seres. Não foram deuses estranhos que assim o dispuseram. Único é o princípio universal e os anjos os quais, colocados à frente das nações, orientaram a Ele todos os que quiseram seguí-los. Pensa em Melquisedec. Estava pleno de amor de Deus e era sacerdote, não de falsos deuses, mas do verdadeiro Deus altíssimo (Gen. 14, 18-22; Sl. 110, 4; Heb. 7, 1). Os sábios das ciências sagradas não se contentaram em chamar Melquisedec de amigo de Deus. Descreveram-no como sacerdote para fazer ver aos homens sensatos que o seu ofício não era simplesmente converter-se ao verdadeiro Deus mas, ainda mais, como grão sacerdote, guiar a outros em seu caminho de ascensão ao único Deus verdadeiro.

4. Aqui tens outro motivo para entender a hierarquia. O anjo tutelar dos egípcios fêz ver ao Faraó que existe uma Providência solícita e com senhorio poderoso sobre todas as coisas. O mesmo fêz o anjo dos babilônios com o chefe de sua nação. Puseram à frente daquelas nações a servos do verdadeiro Deus, intérpretes das visões que Ele enviou por meio de seus anjos, os quais as revelaram a José e a Daniel (Gen. 41, 1; Dn. 2, 1; 4, 1-27). Um só é o Senhor de todos, e única a sua providência. Não imaginemos, por conseguinte, que Deus vela tão somente pelo povo judeu e que outros deuses ou anjos, em condições de igualdade ou parecendo-se com Ele, estão à frente de outros povos. As passagens que poderiam sugerir tal idéia devem interpretar-se em sentido sagrado (Dt. 32, 8; Dn. 10, 13-21), pois não podem significar que Deus compartilhe o governo da humanidade com anjos estranhos, nem que governa ao povo de Israel como se fosse o seu Príncipe ou Chefe nacional.

A Providência do Altíssimo, que é única para todos, mandou anjos que guiassem os povos à sua salvação, porém só Israel foi o que se converteu à Luz e confessou o verdadeiro Senhor. Por isso a Escritura mostra com as seguintes palavras que Israel escolheu por si mesmo adorar ao verdadeiro Deus:

"Veio a ser a porção do Senhor". Gen. 32, 9

A teologia diz também que Miguel está à frente do povo judeu (Dan. 10, 21), com o que significa claramente que foi assinalado um anjo a Israel, como às demais nações, para que por seu meio reconheça a aquele que é princípio de governo único e universal. Pois única é a Providência para todo o mundo, supraessência que transcende todo poder visível e invisível. Há anjos à frente de cada nação, com a missão de guiar até a Providência, como sua própria fonte, a todos os que queiram segui-los de boa vontade.

CAPÍTULO X

1. Concluímos, portanto, que o primeiro grupo dos seres inteligentes mais próximos de Deus está hierarquicamente ordenado pelas iluminações procedentes do Princípio de toda perfeição e eleva-se até Ele sem necessidade de intermediário. Eles obtém a purificação, iluminação e perfeição graças ao dom de secretas e resplandecentes luzes da Deidade. Luzes mais secretas porque são mais intelectuais, mais unificadoras e unificantes. Mais brilhantes porque recebem-nas diretamente, antes que ninguém em sua totalidade. Projetam-se com tanto maior fulgor quanto mais próximas estejam de seu manancial.

Depois desta ordem, temos a segunda, e em seguida a terceira. Depois a nossa hierarquia, conforme à sua própria natureza e ao disposto pela harmoniosa fonte, com divina equidade, para que toda a ordem se eleve até o Princípio e o Término de toda a harmonia, muito acima de qualquer outro princípio.

2. Cada uma das ordens é portadora de revelações e notícias das ordens que a precedem. A primeira o transmite diretamente de Deus, enquanto que as outras, conforme sua posição, o comunica segundo o recebem de seus anteriores a quem Deus o inspirou. Porque a harmonia supraessencial do universo dispôs providencialmente sobre todos os seres dotados de razão e inteligência a fim de que sejam retamente dirigidos e santamente elevados. De maneira apropriada ao caráter sagrado de cada uma, esta harmonia ordenou os grupos distribuindo-os hierarquicamente, conforme vimos, em poderes superiores, médios e inferiores. Ademais, distribuiu-os eqüitativamente segundo o grau de participação divina que cada uma possui. Mais ainda, os teólogos nos dizem que os santíssimos serafins se "aclamam uns aos outros" (Is. 6, 3), com o que, segundo o entendo, manifestam que os da primeira hierarquia transmitem aos demais o que conhecem de Deus.

3. Há algo mais que posso razoavelmente acrescentar aqui. Cada inteligência, celeste ou humana, possui seu próprio conjunto de primeiras, médias e ínfimas ordens e poderes, que manifestam, na proporção de suas capacidades, a faculdade de elevar-se, como fica dito, segundo as elevações hierárquicas próprias de cada uma. Conforme a esta ordenação, cada uma das hierarquias, na medida de suas possibilidades e em que lhe é permitido, participa daquela Purificação que excede a toda purificação; daquela luz superabundante, daquela Perfeição que está acima de toda purificação. Não há nada absolutamente perfeito. Nada que não tenha necessidade de aperfeiçoar-se. Somente o Ser realmente perfeito em Si mesmo, acima de toda a perfeição.

CAPÍTULO XI

1. Feitas já todas as distinções, é justo que consideremos agora por que costumamos chamar de "poderes celestiais" a todos os anjos (Dn. 3, 61; Sl. 24, 10; 80, 5; 80, 8; 80, 15; 80, 20; 103, 21). Não podemos generalizar a palavra "poderes" como fizemos com "anjos". Não podemos afirmar que a ordem dos santos poderes seja a última de todas, nem que a ordem dos seres superiores participe da santa iluminação dada aos inferiores, nem que estes últimos participem no que recebem dos superiores. Assim, pois, a denominação "poderes celestiais" não pode estender-se até compreender todas as inteligências divinas, o mesmo que não podemos fazer com serafins, tronos e dominações. As ordens da última hierarquia não participam dos atributos próprios da superior. Não obstante, chamamos "poderes celestiais" aos anjos e aos superiores a eles, aos arcanjos, aos principados, às potestades que os teólogos consideram inferiores aos "poderes". Dizemos o mesmo dos outros hierarquicamente superiores.

2. No entanto, sempre que empregamos a denominação "poderes celestiais" em geral, para todos estes seres, não confundimos os atributos próprios de cada ordem. Observamos claramente que, por razões superiores a este mundo, nas inteligências divinas acha-se a tríplice distinção de ser, poder e ação. Suponde agora que, sem pensá-lo, chamemos a alguma ou a todas elas "seres ou poderes celestiais". Reconhecemos, portanto, que falando assim de tais seres e poderes estamos nos utilizando de uma expressão fundamentada no ser e poder de todas as ordens. Não se trata de atribuir indistintamente aos seres inferiores as eminentes propriedades dos santos "poderes" já descritos. Isto perturbaria o princípio de ordem que regula as hierarquias angélicas e exclui qualquer confusão.

Pela razão que expus com tanta freqüência e retidão, as hierarquias superiores possuem em grau eminente os atributos de seus inferiores, enquanto que estes últimos não possuem a plenitude transcendente dos mais altos, se bem que a iluminação pura do Princípio lhes é parcialmente transmitida por meio dos primeiros na proporção da capacidade receptiva dos últimos.

CAPÍTULO XII

1. Os que gostam de estudar as Escrituras encontram aqui outro problema. Se os últimos não participam em tudo o que dispõem os mais altos, por que as Escrituras chamam a nosso hierarca humano de "anjo do Senhor onipotente" (Mal. 2 ,7; Mal. 3, 1; Gal. 4, 14; Apoc. 2-3)?

2. Creio que esta expressão não contradiz de modo algum o que foi dito anteriormente. Reconhecemos que as ordens inferiores não possuem a plenitude nem o poder completo correspondente às superiores. Porém participam proporcionalmente no poder daqueles como parte da harmoniosa, universal e eqüitativa comunhão em que todos se entrelaçam. Deste modo, mesmo no caso de que a ordem dos santos querubins possua sabedoria e ciência mais elevadas, também as ordens dos seres inferiores compartilham em menor proporção sua sabedoria e ciência, ainda que seja inferior e parcial. De fato, todos os seres inteligentes deificados participam na sabedoria e na ciência. Eles se diferenciam segundo que esta participação venha diretamente da fonte ou de modo indireto e inferior, conforme à capacidade de cada um. Isto se pode dizer de todos os seres-inteligências deificados, e assim como a primeira ordem possui em plenitude os santos atributos de suas inferiores, estes têm também os dos superiores, ainda que em menor proporção, não de igual modo.

Pelo que não vejo nenhum inconveniente em que as Escrituras chamem de "anjo" inclusive a nosso hierarca (o bispo). Possui a propriedade de ser, dentro do possível, como os anjos, um mensageiro. Têm, ademais, a missão de imitar, segundo suas possibilidades, o poder revelador dos anjos.

3. Poderás também advertir como a Escritura chama "deuses" não apenas aos seres celestes, que estão muito acima de nós (Sl. 82, 1; 95, 3; Gen. 32, 28-30), mas também aos homens piedosos que entre nós se distinguem por seu amor a Deus (Ex. 4, 16; 7, 1; Sl. 45, 6; 82, 6; Jo. 10, 34). Deus é mistério que transcende todo ser. É supraessencial a todo ser. Nada há que de nenhum modo possa comparar-se com Ele. No entanto, todo ser dotado de inteligência e razão, que tenda com todas as suas forças à união com Deus, que procure imitá-lo incessantemente o quanto possa, tal homem bem merece que o chamemos de divino.

CAPÍTULO XIII

1. Há algo mais que devemos considerar do melhor modo possível. Por que se diz que um dos teólogos recebeu a visita de um serafim (Is. 6, 6-7)? Qualquer um poderia estranhar o fato de que tivesse vindo purificar ao intérprete um dos seres superiores e não dos anjos inferiores.

           

2. Alguns, de acordo com a teoria anteriormente exposta, sobre a reciprocidade dos seres-inteligências, dizem que a Escritura não afirma expressamente que tivesse vindo purificar ao teólogo um dos seres-inteligências dos mais próximos a Deus dentro da primeira hierarquia. Ela refere-se aqui, dizem, a um daqueles anjos encarregados de nós, que tinha a missão de purificar ao profeta. Chamaram-no de serafim pela semelhança de ter-lhe que apagar os pecados mediante o fogo e reestabelecer ao recém purificado na obediência a Deus. Por conseguinte, segundo esta interpretação, a passagem do serafim não se referiria a um dos que assistem ao trono de Deus; tratar-se-ia de alguns dos poderes encarregados de purificar-nos.

  3. Alguém me apresentou outra solução razoável a este problema. Diz que aquele anjo poderoso, seja quem ele for, apareceu ao profeta para iniciá-lo nos mistérios divinos. Em seguida o mesmo anjo disse que havia sido Deus ou um dos anjos mais próximos a Ele quem havia realizado aquela purificação. É isto verdade? A pessoa que fêz tal afirmação dizia que o poder da Deidade se difunde por todo lugar e penetra irresistivelmente todas as coisas sem deixar-se ver (Sab. 7, 24; Heb. 4, 12) porque é supraessencialmente transcendente e oculta misteriosamente a sua atividade providencial. Não obstante, sua atuação se manifesta proporcionalmente a todo ser inteligente. Concede o dom de sua luz aos seres superiores, que por ser da primeira hierarquia utilizam de intermediários para transmitir a luz harmoniosamente dada aos inferiores, para que retornem ao seu olhar contemplativo.

Digamo-lo mais claramente com exemplos ao nosso alcance, ainda que sejam inadequados em relação a Deus. Os raios da luz solar atravessam com maior esplendor a primeira capa material. Porém quando se chocam com corpos sólidos parecem mais escuros e difusos, porque é matéria menos apta para a passagem da luz desbordante. A obstrução se faz cada vez maior até que por fim não há mais caminho para a luz. O mesmo ocorre com o calor do fogo. Passa mais facilmente por corpos condutores que o recebem melhor e se lhe parecem mais. Porém quando bate em substâncias refratárias não produz efeito, ou apenas deixa leve rastro. Isto se observa claramente quando o fogo passa por coisas que lhe são bem dispostas e depois por outras que não lhe são afins. O mesmo quando o fogo toca primeiro coisas inflamáveis e depois, por meio destas, chega à água ou a outras que se aquecem com dificuldade.

Conforme a esta harmoniosa lei da natureza, a admirável Fonte de toda ordem visível e invisível derrama maravilhosamente (Sab. 7,13) os plenos e primordiais fulgores de sua luz esplêndida sobre os seres da primeira hierarquia. As ordens seguintes, por sua vez, participam daqueles raios através dos primeiros. Primeiros em conhecer a Deus, desejam mais que outros seres deificados; mereceram chegar a ser, dentro do possível, os primeiros operários em poder e ação semelhante a Deus. Estimulam amavelmente aos seguintes a que compitam com eles. De boa vontade distribuem aos inferiores os raios luminosos recebidos (Is. 6, 2). Estes, por sua vez, transmitem-nos a outros ainda mais baixos. Deste modo, em níveis distintos, os que precedem transmitem aos seguintes a luz divina que recebem. Luz que se reparte proporcionalmente a todos segundo a medida com que a possam receber.

Certo. Deus mesmo é realmente a fonte de luz para todos os que são iluminados, pois Ele é a verdadeira Luz. Ele é causa do ser e da visão. Porém está determinado que, à imitação de Deus, a luz passe do ser superior ao inferior. Por isso os outros seres angélicos seguem à primeira hierarquia de seres-inteligências no Céu. Depois de Deus, esta é a fonte de todo conhecimento divino e de sua imitação. Por meio desta hierarquia chega até nós toda a iluminação divina. A atividade sagrada, realizada à imitação de Deus, é atribuída, por um lado, a Ele como Causa última, e por outro, aos seres-inteligência mais próximos a Deus, deiformes, como primeiros mestres dos mistérios divinos. Os anjos da primeira hierarquia possuem melhor do que os demais a propriedade ígnea e uma participação maior na sabedoria divina que lhes é dada; o conhecimento supremo das iluminações divinas e propriedade dos "tronos", que significa o poder de estar abertos para receber a Deus. As hierarquias inferiores participam do fogo, da sabedoria, do conhecimento de Deus, e estão também dispostas a acolhê-lo. Porém em menor grau e com a condição que se fixem nos seres-inteligências da primeira hierarquia, por meio dos quais, como mais dignos imitadores de Deus, se tornam semelhantes e Ele. As hierarquias segundas participam, por meio das primeiras, nestas santas propriedades, atribuem-nas às primeira hierarquias que, depois de Deus, são as supremas.

4. A pessoa que opinava conforme ficou dito sustentava que, na visão do profeta, era um daqueles santos anjos encarregados de nós. Sob a orientação luminosa deste anjo elevou-se a tal contemplação que, se me é lícito falar em símbolos, pôde contemplar os seres de grau superior situados debaixo, ao redor e com Deus. Mais além daqueles seres, pôde admirar o cimo, inefavelmente superior, que ultrapassa todo princípio, põe o seu trono entre eles e os domina a todos (Gen. 1, 25). Por esta visão o profeta compreendeu que a Deidade, por sua absoluta supraessência, ultrapassa todo o poder, visível e invisível.

É completamente independente de todas as coisas. Não se pode comparar nem sequer com as mais nobres. É causa e fonte de todo o ser e de que todo ser seja bom (Is. 6, 2), de seu fundamento imutável, inclusive os mais elevados.

O profeta conheceu então os poderes deificantes dos santíssimos serafins. "Serafim" significa ardente. Vou explicá-lo brevemente, o melhor que me for possível, como o poder do fogo faz elevar-se até à semelhança com Deus. A sagrada imagem das seis asas significa o impulso maravilhoso com que as hierarquias primeiras, médias e inferiores se elevam constantemente até Deus. Enquanto via os inumeráveis pés, a multidão dos rostos, as asas com que ocultava acima os rostos e abaixo os pés, as asas do meio em um bater constante, o santo profeta foi elevado à compreensão daquelas coisas. Foram-lhe mostradas as múltiplas facetas das inteligências mais excelsas, o multiforme poder de sua visão. Foi testemunha da reverência sagrada e da maneira extraordinária com que aqueles espíritos procedem na investigação dos mais altos e profundos mistérios, sem presunção, sem arrogância nem fantasias. Testemunha também do movimento harmonioso e elevado com que atuam incessantemente a imitação de Deus.

Ademais, aprendeu o santo profeta aquele cântico de louvor à Deidade, pois o anjo desta visão lhe comunicou, dentro do possível, toda a ciência sagrada que tinha. Ensinou-lhe também que toda pessoa se purifica na medida em que participa da claridade transparente da Deidade. Por razões que não são deste mundo, a própria Deidade infunde esta misteriosa e supraessencial claridade nos sagrados seres-inteligências. Recebem-na melhor, com mais humildade, como é óbvio, as hierarquias mais próximas à Deidade, pois sua capacidade é maior. Quanto ao poder da segunda e terceira hierarquia e de nossa mesma inteligência, Deus dá mais ou menos luz, dEle proveniente, para alcançar a incognoscível união com seu próprio mistério, segundo o grau de configuração com a Deidade. Ilumina as sagradas hierarquias por meio das primeiras. E, para dizê-lo brevemente, a Deidade se dá a conhecer por meio dos primeiros poderes.

 O profeta aprendeu do anjo, enviado para levá-lo à luz, que a purificação e as demais atuações da Deidade, refletidas nos seres superiores, difundem-se entre os demais, segundo cada qual participa das obras divinas. Por isso o profeta atribuíu razoavelmente aos serafins, próximos a Deus, a propriedade de purificar pelo fogo. Por isso não está fora de lugar dizer que foi um serafim quem purificou ao profeta. Deus purifica todo ser porque Ele é a causa de toda purificação. Ou mais corretamente, servindo-me de um exemplo familiar, Ele é nosso bispo, que por meio de seus diáconos e presbíteros purifica e ilumina. Diz-se que o próprio bispo purifica na medida em que estas ordens recebidas dele atribuem-lhe as sagradas atividades que eles realizam.

De modo semelhante, o anjo que efetuou a purificação do profeta refere seu saber e poder de purificar primeiro a Deus, como Causa, e em seguida aos serafins como a seus ministros imediatos.

Como se o anjo, ao informar a quem purificava, lhe dissesse prudentemente:

"a purificação que se verifica em ti por meu intermédio tem como princípio, essência e causa ao Ser Transcendente que dá a existência aos seres da primeira hierarquia, os conserva e os protege junto a Ele, imutáveis e perfeitos, e os induz a tomar parte nas atuações de sua Providência".

Isto é o que eu aprendi de meu mestre a respeito da missão do serafim. Depois de Deus são os hierarcas e chefes supremos dos seres da primeira hierarquia os que me instruíram neste ofício de purificar e que, por meu intermédio, te purificam a ti. Por meio deles, Aquele que é Causa e autor de toda purificação deu a conhecer a oculta atuação de sua Providência, abaixando-se até o nível em que a possamos compreender.

Isto eu aprendi de meu mestre e deste mesmo modo o transmito a ti. Cabe agora ao teu entendimento e sentido crítico optar por uma ou outra das soluções propostas. Escolhe o que te pareça mais verossímil, razoável e conforme à verdade. A não ser que, naturalmente, tu mesmo apresentes outra solução mais objetiva e próxima à verdade ou a aprendas de algum outro. Isto é, tomando como fundamento a palavra de Deus (Sl. 68, 11) e a interpretação que dela dão os anjos. Então poderias revelar-me a mim, que amo aos anjos, uma contemplação mais clara e mais pura que eu quereria para mim.

CAPÍTULO XIV

1 . Creio que devemos refletir sobre a tradição bíblica de que o número dos anjos é mil vezes mil e dez mil vezes dez mil (Dn. 7, 10; Ap. 5, 11). São números que, elevados ao quadrado, e multiplicados, nos indicam que é infinito o número das hierarquias celestes. Tão numerosos, de fato, são os exércitos bem aventurados dos seres-inteligências, que ultrapassam o deficiente e limitado campo de nossos números físicos. Só podem conhecê-los e definí-los aquelas inteligências e a ciência transcendental, celeste, que generosamente lhes concedeu Deus, o onisciente, o Criador da sabedoria. Esta supraessencial Deidade verdadeira é a fonte de todas as coisas, a causa da existência, o poder que a tudo mantém e a causa final que tudo abarca.

CAPÍTULO XV

1. Agora, se te parece, o olhar de nossa inteligência vai descansar do esforço que faz para chegar às alturas solitárias da contemplação própria dos anjos. Baixemos às planícies da divisão e da multiplicidade, à diversidade de formas que tomaram os anjos em suas aparições. Em seguida voltaremos sobre nossos passos, partindo destas imagens, e nos ergueremos às inteligências celestes.

Porém, antes de tudo, tem em muita conta que as explicações dos símbolos sagrados indicam que as mesmas ordens de seres celestes algumas vezes dirigem nas coisas sagradas e outras vezes são dirigidas; que as de ínfimo grau dirigem, e as de primeiro são dirigidas; que, como já disse, todos eles têm poderes superiores, intermediários e inferiores.

Esta maneira de explicar as coisas não implica em nenhum absurdo. Seria total absurdo e estúpida confusão que tal ou qual hierarquia em relação aos mistérios sagrados sejam dirigidas exclusivamente por suas superiores e que ao mesmo tempo estas últimas sejam dirigidas pelas inferiores. Ou que a superior instrui à inferior e esta, por sua vez, à superior sob o mesmo aspecto. Ao afirmar que os mesmos seres dirigem e são dirigidos não quero dizer que o diretor seja dirigido por aquele mesmo a quem dirigiu. O que significa é que cada ordem é dirigida por aquela que a precede e que esta dirige às que lhe seguem como inferiores. Portanto, não há nenhum inconveniente em dizer que as representações sagradas das Escrituras podem às vezes ser atribuídas com propriedade e correção aos poderes superiores, outras aos intermedi rios e também aos inferiores.

O poder de elevar-se em constante movimento de retorno, o poder de voltar-se incessantemente sobre si mesmos enquanto conservam os próprios poderes, a capacidade de participar no plano providencial de comunicar-se sucessivamente com as ordens inferiores é, sem dúvida, característico dos seres celestes, próprio de alguns, conforme disse com freqüência, de modo inteiramente transcendente, de outros de modo parcial e inferior.

2. Agora vamos abordar o tema proposto. Nossa explicação começa com a questão de por que a Escritura parece preferir a alegoria do fogo a todas as demais. Observarás que não apenas representa rodas inflamadas (Dn. 7, 9), como também animais em chamas (Ez.1, 13; II Re. 2, 11) e homens em certo modo incandescentes (Mt. 28, 3; Lc. 24, 4; Ez. 1, 4-7; Dn. 10, 1). Põe montes de tições acesos em torno aos seres celestes (Ez. 1, 13; 10, 2), e rios de fogo com ruído imponente (Dn. 7, 10). Tronos de fogo (Dn. 7, 9). Evoca a etimologia da palavra "serafim" descrevendo-os como incandescentes, atribuindo-lhes propriedades do fogo (Is. 6, 6). Geralmente a Escritura prefere a imagem do fogo ao falar das hierarquias, sejam de ordem superior ou inferior. Na realidade, em meu parecer, o símbolo do fogo é a melhor maneira de expressar a semelhança que têm com Deus os seres-inteligências do Céu.

Praticamente é esta a razão pela qual os santos teólogos representam com a imagem do fogo ao Ser supraessencial, que não admite figura (Ex. 3, 2-6; 14, 24; 19, 18; Is. 4, 5; 29, 6; 30, 30; Dt. 4, 24; Sl. 89, 47; Ez. 1, 4; I Re. 19, 11). Como imagem de coisas sensíveis, o fogo representa, para assim dizê-lo, muitas propriedades da Deidade. O fogo, na realidade, está sensivelmente presente em todas as coisas. A tudo penetra sem manchar-se e continua ao mesmo tempo separado. A tudo ilumina e permanece, por sua vez, desconhecido, pois não o percebemos mais do que pela matéria onde opera. É incontenível. Ninguém o pode contemplar fixamente. A tudo domina e transforma em si mesmo ao que alcança. Entrega-se aos que se lhe aproximam. Renova com o seu calor vivificante. Ilumina com seu esplendor e permanece puro, sem misturar-se. Produz mudanças, mas em nada se altera. Sobe ao mais alto e penetra ao mais profundo. Arrasta-se pelos solos e caminha pelo mais elevado. Sempre movendo-se a si mesmo e movendo aos demais. Estende-se por todas as direções sem que possa ser encerrado em nenhuma parte. Não necessita de ninguém. Cresce escondido e manifesta sua grandeza onde quer que seja recebido. Dinâmico, poderoso, invisível, presente em todo ser. Se não lhe fazemos caso, parece que não existe. Porém quando há atrito, como se lhe fizéssemos uma súplica, sai em busca de algo. Surge repentinamente, naturalmente e por si só; imediatamente se levanta incontenível e sem prejuízo próprio, alegremente se comunica com suas vizinhanças.

Poderiam descobrir-se muitas outras propriedades do fogo que, como imagens tomadas do sensível, podem aplicar-se às atividades da Deidade. Os que entendem da sabedoria divina manifestam seus conhecimentos representando pelo fogo as coisas celestiais. Deste modo manifestam a proximidade com que estas imagens se parecem com o divino as quais, de certo modo, imitam a Deus.

3. Para representar seres celestes utilizam também figuras antropomórficas (Dn. 10, 1; Ez. 1, 5-10; Mc. 16, 5; Lc. 24, 4; Ap. 4, 7; 10, 1), pois o homem, apesar de tudo, é inteligente e capaz de olhar para o alto. Firme e direito, é por natureza chefe e governante. Comparado com os animais irracionais, é o menor na escala da força e das sensações; porém ele domina a todos com o poder superior de sua inteligência, pela sabedoria de seu saber racional e a natural liberdade e independência de seu espírito.

Penso também que cada uma das partes do corpo humano nos subministra imagens perfeitamente aplicáveis aos poderes celestes. Poderia dizer-se que as faculdades visuais (Ez. 1, 18; 10, 12; Dn. 10, 6; Ap. 4, 6-8) sugerem o poder de olhar diretamente as luzes divinas e ao mesmo tempo a capacidade de receber as iluminações de Deus com suavidade, claridade, sem resistência, docilmente, pura e abertamente, sem paixão.

O poder de distinguir odores (Tb. 6, 17; 8, 13) indica a capacidade de acolher plenamente as fragrâncias que o entendimento não alcança. Discernimento também para entender o que está corrompido e rejeitá-lo absolutamente.

A faculdade do ouvido (Sl. 103, 20) significa a capacidade de participar de algum modo na inspiração divina.

O gosto (Gen. 18, 5-8; 19, 1-3; Is. 25,6) tem relação com a satisfação do entendimento quando bebe até a saciedade nos rios da Deidade.

O tato (Gen. 32, 35; Jz. 6, 21) significa discernir entre o proveitoso e o nocivo.

Pálpebras e sobrancelhas simbolizam o cuidado em guardar o que a mente conheceu de Deus.

Adolescência e juventude (Mc. 16,5) indicam a força vital, sempre vigorosa.

Os dentes referem-se à habilidade com que dividem o alimento que recebem, pois, de fato, todo ser-inteligência, tendo recebido de outro que é superior o dom da inteligência unitiva, passa a dividí-lo e distribuí-lo para que o inferior se eleve o mais possível.

Os ombros, braços (Dn. 10, 6; II Sam. 24, 16) e mãos (Jz. 6, 21; Sl. 91, 12; Ez. 1, 8; 8, 3; 10, 8; 10, 21; Dn. 10, 10; 12, 7; Ap. 10, 5) representam a propriedade de atuar e aperfeiçoar.

O coração (Jer. 7, 24; Sl. 41, 4) é símbolo de uma vida deiforme, que compartilha sua força vital com aqueles por quem se interessa.

O peito significa a fortaleza inexpugnável onde se localiza o coração, fonte de vida.

As costas (Ez. 1, 18; 10, 12) representam o conjunto de poderes que contém energias vitais.

Os pés (Is. 6, 2; Ez. 1, 7; Dn. 10, 5; Ap. 10, 1) significam o movimento acelerado da corrida perpétua que os conduzem às realidades divinas. Por isso as Escrituras puseram asas nos pés (Is. 6, 2; Ez. 1, 6; 1, 22; 10, 5-16) dos seres-inteligências, pois as asas dão a entender rapidez para elevar-se no caminho do Céu, constante impulso que ergue acima dos apetites terrenos. Asas rápidas simbolizam a libertação das atrações mundanas, o puro e desimpedido subir aos cumes.

 Pés descalços e nudez (Gen. 18, 4; 19, 2; Is. 20, 2-4) significam desprendimento, libertação, independência, purificação de toda a exterioridade, a maior identificação possível com a simplicidade de Deus.

4.Aquela simples, porém "multiforme sabedoria" (Ef. 3, 10) veste os nús e fala de como estão vestidos. Devo explicar agora, o quanto me seja possível, o vestuário e os instrumentos sagrados atribuídos aos seres-inteligências no Céu. Penso que os vestidos luminosos e incandescentes (Ap. 9, 17; 15, 6; Lc. 24, 4; Ez. 1, 27) simbolizam a deiformidade. Estão em conformidade com o simbolismo do fogo. O poder de iluminar é conseqüência da herança do Céu, que é morada de luz. Ilustra a mente e na mente todas as coisas se ilustram.

As vestimentas sacerdotais (Ez. 9, 2; 10, 6-8; Ap. 1, 13; 4, 4; Dn. 10, 5-6) significam a disponibilidade para encaminhar-se espiritualmente até a divina e misteriosa visão, consagrando-lhe toda a vida. Os cintos (Ez. 9, 2; 10, 2-6; Ap. 15, 6; Dn. 10, 5) indicam o domínio que os seres-inteligências possuem de suas forças reprodutoras. Significam também o poder destes seres para recolherem-se, sua concentração unificante, o dobrar-se harmonioso e incansável em torno à própria identidade.

5. Os cetros (Jz. 6, 21; Is. 10, 5) simbolizam o poder e a soberania com que conduzem à perfeição todas as coisas.

As lanças (II Mc. 5, 1-3; Jer. 6, 22-23; Is. 49, 2) e os machados (Ez. 9, 2; Gen. 3, 24; Num. 22, 23; Jos. 5, 31; I Cron. 21, 15; Ap. 19, 21) representam a habilidade de separar as coisas dessemelhantes, a aguda claridade e eficácia de seus poderes de discernimento.

Os instrumentos geométricos e de arquitetura indicam o poder de colocar cimentos, edificar, acabar e, de modo geral, tudo o que se refere à elevação espiritual e conversão providencial de seus subordinados (Ez. 40, 3; Am. 7, 7; Zac. 2, 1; Ap. 21, 15).

Às vezes os instrumentos (Ap. 8, 6; 14, 14-17; 20, 1) empregados para representar aos santos anjos simbolizam os julgamentos de Deus em relação a nós. Uns representam a disciplina que corrige ou o reto castigo, outros a libertação do perigo, o da disciplina ou repercussão da felicidade anterior, a concessão de novos dons, grandes ou pequenos, dons sensíveis ou intelectuais. Em suma, a uma inteligência perspicaz não seria muito difícil encontrar a correlação entre os sinais visíveis e as realidades invisíveis.

6. São também chamados de "ventos" (Sl. 104; Heb. 1, 7; Apoc. 6, 1), para indicar a quase instantânea rapidez com que operam em todas as partes, sem ir nem vir de cima para baixo ou de baixo para cima, quando levantam a seus inferiores até o mais alto cume e quando induzem aos superiores a que desçam para comunicarem-se com os inferiores e exercer sua providência com estes últimos.

Poderíamos acrescentar que a palavra "vento" significa espírito do ar e mostra como os seres-inteligências vivem em conformidade com Deus (Jo. 3, 8). Vento é imagem e símbolo da atividade divina que move naturalmente e dá vida, empurrando para diante reta e incontenivelmente. E isto por razões desconhecidas e invisíveis; isto é, fica oculto para nós o princípio e o fim de seu movimento.

"Não sabes",

diz a Escritura,

"de onde vem, nem para onde vai".

Disto tratei com mais pormenores na Teologia Simbólica, ao explicar os quatro elementos.

A Escritura os representa também em forma de nuvem (Ex. 33, 9; Num. 12, 5; Sl. 18, 12; 109, 7; Ez. 1, 4; 10, 3; Ap.10, 3), significando com isto que os santos seres-inteligências estão, de modo transcendente, cheios de luz, e como intermediários a transmitiram generosamente aos seguintes na medida em que estes a possam receber. Possuem o poder de dar a vida, de fazer crescer e levar à perfeição porque derramam chuvas de entendimento e chamam ao seio que os recebe para que dê à luz criaturas novas.

7. A Sagrada Escritura, ademais, atribui aos seres celestes forma de bronze (Ez. 8, 2; 40, 3; Dn.10, 5-8; Ap. 1, 5), de âmbar (Ap. 4, 3; 21, 19-21; Ez. 1, 26; Ap. 21, 18-20) e de pedras multicores. Porque o âmbar, que contém ouro e prata (Ez. 1, 7; 40, 3; Dn. 10, 6), simboliza por um lado o incorruptível, inesgotável, indefectível e puríssimo do ouro; por outro, a claridade brilhante e celeste da prata. O bronze, pelas razões indicadas, representa o fogo e o ouro. Quanto às pedras multicores, deve-se entender o seu simbolismo como se segue: o branco é a luz; o vermelho, o fogo; o amarelo, o ouro; o verde, a vitalidade juvenil.

Encontrarás que cada espécie leva consigo um significado elevador por cada imagem representativa. Porém, como creio ter tratado suficientemente destes temas, passemos agora à santa explicação das figuras animais que a Escritura atribui aos seres-inteligências do Céu.

8. A figura do leão (Ez. 1, 10; 10, 14; Ap. 4, 7; 10, 3; Sl. 77, 19; Dn. 7, 4; Is. 31, 4; Ez. 19, 2-7; Sl. 57, 5) indica o domínio poderoso e indomável. Os seres celestes se aproximam o mais que podem ao mistério da inefável Deidade cobrindo as pegadas da própria inteligência. Humilde e misteriosamente, colocam um véu sobre o caminho que os leva à divina iluminação.

O símbolo do boi (Ez. 1, 10) indica a força e o poder, a capacidade de abrir profundos sulcos de conhecimento onde caiam as fecundas chuvas dos céus. Os cornos são sinal do poder que guarda e é invencível.

A águia (Ex. 19, 4; Dt. 32, 11; Ez. 1, 10; Dn. 7, 4; Ap. 4, 7) significa a realeza, o rápido lançar-se ao mais alto, o vôo veloz, a agilidade, a disposição, rapidez e agudeza para descobrir o alimento. É símbolo da contemplação que livremente, de modo direto e sem rodeios, dirige o olhar vigoroso em direção aos abundantes raios que prodigaliza o Sol divino.

Os cavalos (II Re. 2, 11; 6, 17; Zac. 1, 8-10; 6, 1-5; Ap. 6, 1-8; 19, 14) significam obediência e docilidade. Sua brancura é brilho comparável à luz de Deus; sua cor marrom significa a profundidade dos mistérios; o vermelho é o poder e a eficácia do fogo; os de pelo branco e preto designam a aliança de extremos opostos e o poder passar de um a outro, a adaptação do superior ao inferior e do inferior ao superior, que procede da conversação de uns e da providência de outros.

Se não tivesse que conservar as devidas proporções deste tratado, poderia deter-me em considerar cada uma das partes e dos pormenores físicos dos animais que mencionei. Poderia fazer razoavelmente a aplicação aos poderes celestes, sob o aspecto das semelhanças e dessemelhanças. Assim, a ira dos animais representaria a fortaleza espiritual, da qual a ira é o último vestígio. A concupiscência animal corresponderia ao desejo que sentem os anjos pela presença de Deus. Em resumo, de todos os sentidos e múltiplas partes dos animais irracionais pode-se fazer referência às inteligências imateriais e aos poderes unificantes dos seres celestes.

Estas coisas bastam para os entendidos. Ademais, com a explicação de uma destas imagens comparativas esclarecem-se, por semelhança, os símbolos do mesmo gênero.

9. Vou examinar agora por que se aplicam aos seres celestes os nomes de rios, rodas e carros (Dn. 7, 10; Ez. 47, 1; Ap. 22, 1). Rios de fogo significam os canais divinos que não cessam de fluir copiosamente sobre os anjos alimentando sua fecundidade vital. Os carros (II Re. 2, 11; 6, 17; Sl. 104, 3; Zac. 6, 1-8) significam a aliança entre os que constituem a mesma ordem. Quanto às rodas com asas (Ez. 1, 15-21; 10, 1-13; Dan. 7, 9), que avançam sem voltar atrás nem desviar-se, significam o poder de caminhar diretamente ao longo do caminho, sem desviar-se, graças ao que a roda de sua inteligência é guiada de modo nada comum a este mundo. Porém poderíamos fazer outro comentário sobre a iconografia das rodas da mente dela tirando um ensinamento espiritual. Porque, conforme disse o profeta, chamam-se "Gelgel" (Ez. 10, 13 in LXX), que em hebraico quer dizer revolução e revelação. Estas rodas flamígeras, à semelhança de Deus, "giram" em torno de si mesmas em seu movimento incessante em torno do Bem. "Revelam", na medida em que declaram mistérios ocultos, elevam as mentes desde os graus inferiores e transmitem a estas as luzes mais altas.

Resta-me, finalmente, explicar o que a Escritura entende por alegria das ordens celestes. Não é possível que estas hierarquias experimentem os prazeres das paixões. Por isso, o que aqui se diz refere-se ao gozo divino que experimentam por achar o que se havia perdido (Lc. 15, 7-10; Jo. 16, 22-24). Experimentam uma dita serena e verdadeiramente divina, alegria pura, sem inveja, pela providência e salvação dos convertidos a Deus. Felicidade inefável que se observa às vezes quando alguns santos recebem a visita iluminadora de Deus (Jo. 16, 22; 17, 13).

Isto é o que me propus a dizer sobre as representações sagradas. Quem sabe tenha sido muito breve em minhas explicações. No entanto, creio que isto terá evitado que nos estanquemos erroneamente em meras representações simbólicas. Talvez se nos repreenda não haver mencionado todos os poderes, todos os atos e alegorias com que as Escrituras se referem aos anjos. É certo. Porém ter omitido a algumas coisas prova o fato de que encontro-me perdido quando deve-se entender as realidades transcendentes. Eu realmente necessitaria da luz de um guia. Omissões de temas análogos aos que tratei podem explicar-se, porque eu tinha esta dupla preocupação: não fazer um tratado demasiadamente grande e tributar um respeitoso silêncio aos mistérios onde não chega o meu conhecimento.      

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