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Padres da Igreja
S. João Crisóstomo: Sobre o Sacerdócio - Livro 4.

SOBRE O SACERDÓCIO

LIVRO IV

(São João Crisóstomo )

LIVRO QUARTO

1.

Depois destas minhas palavras, Basílio meditou um pouco e disse em seguida: Realmente se tivesses ambicionado esta alta dignidade, com toda razão deverias estar com esse temor. Pois quem com ambição pelo cargo confessa considerar-se apto, uma vez nele instalado, jamais poderá desculpar seus erros alegando inexperiência. Pelo fato de ter corrido ao seu encalço, cortou qualquer defesa para si mesmo, e, tendo-o usurpado premeditada e voluntariamente, jamais poderá apresentar desculpa dizendo: foi sem a minha vontade que causei a perda deste ou daquele. O Juiz a quem tiver que prestar contas, responder-lhe-á: Por que então, conhecendo tua inexperiência e incapacidade para exercer o cargo, correste tão avidamente ao seu encalço? Por que tiveste a ousadia de aceitar um cargo que supera todas as tuas capacidades? Quem te obrigou a isto? Quem te forçou, quando quiseste eximir-te?

Tu, porém, jamais ouvirás tais palavras. Porque disso ninguém poderá acusar-te. Todos sabem que nunca procuraste essa dignidade; foram outros que quiseram incumbir-te da mesma, e com toda a razão. Aquilo que para os primeiros será impedimento na procura de perdão, para ti será fundamento em tua defesa.

Depois dessas palavras de Basílio, sorrindo, sacudi a cabeça. Admirando tua ingenuidade, falei, desejaria realmente que fosse como acabas de afirmar, meu amigo muito amado, embora não tencionando nem agora aceitar o cargo do qual acabo de eximir-me. Pois mesmo que nenhuma punição me aguardasse ao aceitar, nesta minha insânia e inexperiência, o cuidado pelo rebanho de Cristo, o fato de parecer ação injusta contra quem me outorgasse a dignidade, seria para mim mais insuportável do que qualquer punição.

Mas por que, apesar disso, desejaria sinceramente que tua opinião fosse justificada? - A fim de que todos aqueles homens miseráveis e desgraçados (pois é este o nome que merecem os incapazes de administrar esse cargo, mesmo que, conforme tua opinião, fossem forçados a aceitá-lo e por isso fracassassem por ignorância) - possam salvar-se daquele fogo inextinguível, daquelas trevas extremas, daquele verme indestrutível, da perdição e condenação eternas junto com todos os hipócritas.

O que direi, a seguir, sobre esta tua opinião? De maneira alguma é assim como dizes. E caso permitires, primeiro provarei o acerto de minha afirmação, argumentando com a realeza que perante Deus vale menos do que o sacerdócio.

Saul, filho de Cis, tornou-se rei sem ter a isso aspirado; saíra para procurar as jumentas do pai e, ao indagar por elas, chegou até o profeta. Este falou-lhe da realeza. E Saul, embora fosse chamado pela boca do profeta, ainda não aspirava à dignidade; pelo contrário, até procurou rejeitá-la ou evadir-se dela.

"Quem sou eu",

disse

"e demasiadamente modesta é a casa de meu pai".
I Rs. 9, 21

E agora? Depois de ter abusado da honra que Deus lhe conferira, porventura, essas palavras conseguiram libertá-lo da ira daquele que o constituíra rei? E ainda assim, quando Samuel o acusava, poderia ter-lhe respondido: acaso fui eu quem aspirou a ser rei? Fui eu quem insistiu, com veemência, em alcançar esse poder? Queria levar a minha vida simples e tranqüila, livre de qualquer atividade pública, quando tu, contra minha vontade, me impuseste a realeza. Se tivesse continuado na minha posição modesta, facilmente teria evitado essas faltas. Pois, pertencendo à grande massa, anônimo, não teria sido enviado a realizar tal obra; Deus não teria colocado em minhas mãos esta guerra contra os amalecitas e, se não fosse isso, jamais teria cometido este pecado.

Entretanto, tais desculpas, além de muito fracas para servir de justificação, seriam perigosas, provocando ainda mais a ira de Deus. Quem conseguiu posição honrosa tal que supera seus méritos, jamais deverá defender seus erros a pretexto de sua dignidade; pelo contrário, essa extraordinária benevolência de Deus deveria ser-lhe estímulo para um comportamento ético mais apurado. Quem achar lhe seja permitido pecar por causa de sua alta posição, não faz outra coisa senão declarar a bondade de Deus como causa de seus deslizes. É exatamente isso mesmo que os ateus e homens levianos costumam dizer. Nós, entretanto, não podemos seguir esta opinião, entregando-nos a tal loucura; ao contrário, devemos esforçar-nos por contribuir, na medida de nossas forças, para conservar feliz e imaculado o nosso coração.

Passando agora da realeza para o sacerdócio, de que aqui se trata, constatamos que também Heli não aspirou a seu cargo. No entanto, de que lhe adiantou tal fato, quando caiu em pecado? Mas para que estou mencionando que ele não aspirou ao sacerdócio? - Mesmo querendo eximir-se do cargo, não lhe teria sido possível, porque a Lei lho impôs. Sendo da tribo de Levi, em que o sacerdócio se transmitia de geração em geração, era obrigado a aceitá-lo. Mesmo assim foi punido pelo comportamento leviano de seus filhos.

E finalmente, o que aconteceu até mesmo àquele primeiro sacerdote dos judeus, sobre quem o próprio Deus tanto falava com Moisés? Não aconteceu que quase teria perecido se, ao não conseguir resistir sozinho à multidão revoltada, seu irmão não tivesse intercedido por ele para aplacar a ira de Deus? Já que estamos mencionando Moisés, também será importante lembrar o que ele teve que suportar; também isso servirá de argumento para confirmar minhas palavras. Moisés estava tão longe de aspirar à chefia dos judeus que se negou a aceitá-la apesar da ordem expressa de Deus, chegando mesmo a provocar a ira divina com sua resistência. E, mais tarde, exercendo já a chefia do povo, chegou a manifestar a vontade de morrer, somente para livrar-se dela de novo.

"Em lugar de tratar-me assim",

disse ele,

"rogo-vos que antes me façais morrer".
Nm. 11, 15

Por acaso, estas recusas contínuas conseguiram desculpar seu comportamento ao fazer brotar água do rochedo? Sabemos que foi por isso que Deus lhe vedou a entrada na terra prometida. Por sua desconfiança este homem admirável perdeu o direito ao que foi concedido a todos os seus súditos. Depois de tantas fadigas e peripécias, depois das aventuras indescritíveis, depois de tantas lutas e vitórias, não pôde entrar na terra pela qual se submetera a tudo isso!

É como navegador, que tendo suportado todas as peripécias do mar aberto, não consegue gozar da paz e da tranqüilidade do porto.

Vês agora que ninguém consegue desculpar suas falhas, nem os que usurpam o cargo, nem aqueles a quem ele foi imposto por outros? Se até homens escolhidos pelo próprio Deus e querendo eximir-se do cargo sofreram punições tão pesadas, nada conseguindo preservá-los desses castigos, homens como Arão, Heli e aquele outro escolhido por Deus, o santo, o profeta admirável que conversava com Deus como com um amigo, então a consciência de não termos aspirado a esse cargo muito menos poderá ser motivo de desculpa para nós. Principalmente porque muitas das eleições entre nós não se fundamentam na graça de Deus, mas na atividade e na diligência de homens.

Até mesmo Judas, Deus o tinha escolhido; recebera-o naquela comunidade santa, outorgando-lhe, junto com os outros, a dignidade do apostolado; chegou a confiar-lhe mais do que aos outros, entregando-lhe a administração da caixa. E então? Porventura livrou-se ele da punição, depois de ter abusado do cargo, traindo a quem deveria anunciar e gastando em coisas injustas o dinheiro que lhe tinha sido confiado? Eis por que incorreu numa penalidade maior, e com toda a razão-! Pois nunca se deve usar de um cargo recebido de Deus para ofendê-lo, mas para servi-lo.

Quem portanto, incumbido de alguma dignidade importante, achar que deve estar isento de castigo, mesmo que o mereça, procederia de maneira semelhante aos judeus infiéis. Cristo falou:

"Se eu não tivesse vindo,
e não lhes houvesse falado,
não teriam pecado",
Jo. 15, 22

e

"se não tivesse feito entre eles obras,
que nenhum outro fez,
não teriam pecado".
Jo. 15, 24

Admitamos que os judeus, depois de terem ouvido essas palavras, levantassem acusações contra Cristo:

"Por que então vieste e falaste?
Porventura só para castigar-nos mais duramente?"

Na verdade, tal procedimento seria de um estulto e totalmente louco. Pois Cristo, o médico, não veio para condenar-te, mas para salvar-te e curar-te totalmente de tuas doenças. Tu, porém, voluntariamente fugiste de suas mãos; toma, pois, o castigo mais duro! Assim como entregando-te ao tratamento do médico terias sido curado de teus males, fugindo dele, não conseguirás mais livrar-te da doença, e não só deverás continuar a suportá-la, mas, além disso, terás que penitenciar-te por teres evitado os cuidados do médico! 'É por isso que o castigo que nos ameaça não é o mesmo de antes de termos recebido alguma incumbência de Deus; será mais rigoroso e mais duro. Pois quem não se deixa corrigir recebendo benefícios, com razão merece castigo maior.

Sendo que este caminho de defesa também se mostrou insuficiente, não só pelo fato de não salvar os que a ele recorrem, mas até de prejudicá-los, deveremos procurar outro mais seguro.

Que caminho será este? - perguntou Basílio. Com tuas palavras me incutiste tanto medo e tremor que já não me sinto seguro de mim mesmo!

Insistentemente te imploro - retruquei -: não te deixes desanimar a tal ponto! Pois existe realmente um caminho bem seguro. Para nós, os fracos, consiste em nunca aceitarmos tal cargo, e, para vós, os fortes, em fazer depender a vossa esperança pela salvação unicamente da graça divina, cujo auxílio vos guardará de nunca praticar ação alguma que seja indigna desta graça e de seu divino doador. Merecem punição mais dura aqueles que pelo empenho pessoal conseguiram o cargo e o administram mal, quer por leviandade, quer por malícia, quer mesmo por inexperiência. Todavia também os que não ambicionaram o cargo estarão sujeitos à punição.

Acho que não se deveria ceder às insistências de outros antes de ter examinado a própria alma com toda a sinceridade e máximo rigor. Ninguém, pois, ousará assumir a incumbência de construir uma casa se não for construtor, assim como também ninguém terá coragem de tratar o doente se nada entender da arte médica. Mesmo que muitos o pressionem a fazê-lo a todos eles rejeitará sem sentir-se envergonhado de sua ignorância. Ora, aquele a quem se quer confiar o cuidado por tantas almas não deverá examinarse primeiro, mas, mesmo sendo o mais inexperiente, deverá ele aceitar simplesmente o cargo, somente porque este ou aquele o quer, somente porque este ou aquele o pressionou, ou porque não quer ofender a este ou àquele? Como é possível? Porventura não se precipitará na maior desgraça. junto com todos os que lhe foram confiados? Em vez de salvar a sua própria pessoa ainda leva a muitos outros consigo para a condenação. Donde espera ele que lhe venha salvação? De quem espera perdão? Quem intercederá por ele? Porventura aqueles que ora nos pressionam? Quem então salvará a estes? Pois também eles carecerão do auxílio de outros para escapar do fogo. Não penses que estou dizendo tudo isso para atemorizar-te; para convencer-te que se trata da pura verdade, escuta o que Paulo escreve a seu dileto filho Timóteo:

"A ninguém imponhas as mãos precipitadamente,
tornando-te cúmplice dos pecados alheios".
I Tm. 5, 22

Vês agora qual não é somente a censura, mas a punição das quais preservei a todos os que me quiseram impor esse cargo?

2.

Como aos eleitos não será desculpa suficiente dizer não ambicionei o cargo, também não fugi dele por não conhecê-lo, assim aos eleitores não adiantará declarar não terem conhecido o eleito. Pelo contrário, até aumentarão a sua culpa porque elegeram a quem nem sequer conheciam. Sua desculpa aparente aumentará ainda a matéria de acusação. Que absurdo! Quem quer comprar um escravo, apresenta-o primeiro aos médicos, exige avalista, informa-se junto aos vizinhos e, com tudo isso não se contentando ainda, exige um prazo longo de experiência. E querendo incumbir alguém de tão alta dignidade eclesiástica procede-se superficialmente e ao acaso, sem outro exame das personalidades do que o testemunho de um ou outro, muitas vezes apresentado por favor ou desfavor. Quem haverá de interceder por nós se aqueles que deveriam estar do nosso lado também necessitarão da intercessão de outros?

Quem pois quiser impor as mãos a alguém, antes deverá proceder a um exame rigoroso do mesmo; um auto-exame, porém, muito mais rigoroso deverá fazer aquele a quem se quer impor as mãos. Pois, mesmo que todos os eleitores sejam co-responsáveis, isto não libertará o eleito do castigo; ao contrário, ele sofrerá punição ainda mais grave, a não ser que os eleitores tenham agido de manifesta má fé. Se os eleitores forem apanhados por terem escolhido conscientemente o mais indigno, ambos cairão em punição igual. Porque quem levar ao poder a quem manifestamente pretende prejudicar a Igreja, tornar-se-á culpado de tudo quanto este empreender. Se, porém, não for responsável, podendo afirmar ter sido ludibriado pela opinião da massa, nem por isso estará livre de censura; somente o seu castigo será mais leve do que o do eleito.

Por que assim? Porque - como parece - os eleitores foram levados a dar esse passo ludibriados por informações falsas, ao passo que o eleito não poderá alegar a mesma desculpa dizendo: eu mesmo não me conhecia como os outros também não me conheciam. Ora, tendo que contar com castigo mais grave do que seus eleitores, logicamente deverá submeter-se a um auto-exame mais rigoroso. E caso haja quem queira elegê-lo sem o conhecer, deverá procurá-lo e apresentar-lhe todas as razões para superar seu erro. Provando a ele ser indigno até de um exame preventivo, facilmente conseguirá escapar da responsabilidade do cargo.

Numa reunião em que se trata do serviço militar, do comércio marítimo, da agricultura ou de outros negócios profanos, por que, nela, o agricultor não trata da navegação, o militar da agricultura e o navegador do serviço militar? Mesmo sob ameaça de morte? - Manifestamente porque cada um prevê os perigos oriundos de sua inexperiência. Portanto em coisas de menos importância usamos de todos os cuidados, não cedendo nem às maiores pressões exteriores; sob a ameaça do castigo eterno, porém, com que deverão contar todos os que, apesar de sua ignorância, ousam aceitar o sacerdócio sem mais nem menos, nos expomos levianamente ao perigo, pretextando termos sido pressionados? O nosso Juiz não o aceitará. Pois era nossa obrigação tomar providências mais seguras no trato com os bens espirituais do que as que tomamos ao tratar dos bens profanos; e agora manifesta-se que não empregamos nem os mesmos cuidados. Dize-me, caso encarregássemos alguém de construir um edifício, presumindo-o perito em construções sem que ele o fosse realmente, e, ele, depois de ter aceito a incumbência, estragasse material, erigindo a casa de tal maneira que desabaria, porventura aceitaríamos sua desculpa, alegando ter sido pressionado por nós? Jamais! E com toda razão! Pois deveria ter-se negado a aceitar a incumbência. Por conseguinte, se quem estragar madeira e tijolos não consegue libertar-se de culpa, como poderá escapar quem perder almas imortais achando ser suficiente alegar como desculpa ter sido pressionado por outros? - Não seria isso o cúmulo do absurdo?

Não quero afirmar que ninguém seja capaz de obrigar alguém contra sua vontade. Suponhamos, porém, que alguém, submetido a opressões extraordinárias e aos mais variados estratagemas, tenha cedido e aceito o cargo. Estas circunstâncias porventura o salvarão do castigo? Jamais! E peço-te: não nos iludamos a nós mesmos, não nos comportemos como se ignorássemos coisas que até às crianças pequenas já são conhecidas! Pois ao termos que prestar contas não nos adiantará fingirmos ignorância. Consciente de tua fraqueza não aspiraste a esta alta dignidade: certo e louvável! Com a mesma energia também deverias tê-la recusado, quando outros ta ofereceram. Ou acaso só te sentiste fraco e incapaz enquanto ninguém te chamou, tornando-te forte repentinamente, ao aparecer quem te quisesse entregar o cargo? Isto seria ridículo, seria uma farsa que mereceria o maior castigo. É por isso que o Senhor exorta:

"Quem de vós, querendo construir uma torre,
não começa por sentar-se para calcular a despesa,
e ver se possui com que acabar?
Para não suceder que, tendo lançado os alicerces
e não podendo terminar,
todos que o virem comecem a zombar dele".
Lc. 14, 28-30

Nesse caso, o castigo será apenas zombaria e escárnio. No outro caso, porém, a punição será fogo inextinguível, será um verme que nunca morre, será ranger de dentes, extrema escuridão e aniquilação.

Aqueles que me acusam, não querem saber nada disso; caso contrário, deixariam de censurar a quem não quer perder-se levianamente. O exame de que aqui se trata não visa constatar se alguém sabe lidar com trigo e cevada, ou com terneiros e carneiros ou outras coisas semelhantes, mas gira em torno do próprio Corpo de Cristo. Pois a Igreja, conforme as palavras de S. Paulo, é o Corpo de Cristo. E a quem for confiado este Corpo, deverá cuidar dele, a fim de que possa crescer, desenvolver-se e florescer em toda a sua formosura, e deverá fazer com que

"compareça resplandecente,
sem ruga nem mancha
ou algo semelhante".
Ef. 5, 27

Pois que outra finalidade pode ter senão empregar todas as suas forças a fim de que esse Corpo se torne digno de sua Cabeça santa e imaculada? Se os médicos e ginastas na educação dos atletas já necessitam de um modo de vida bem regulamentado, de exercícios constantes para conseguir sua finalidade, quanto mais deverão esforçar-se no cuidado daquele Corpo, cuja luta não é contra carne e sangue, mas contra os poderes e dominadores invisíveis? Como é que alguém poderá manter este Corpo puro e imaculado se não entender extraordinariamente e, além do normal, do tratamento adequado das almas?

3.

Ou, por acaso, não sabes que este Corpo (Místico de Cristo) está exposto a maior número de doenças e perigos do que a nossa carne mortal; que ele mais fácil e rapidamente se corrompe e mais lentamente sara? Para o nosso corpo carnal os médicos já inventaram vários remédios, confeccionaram diversos instrumentos e prepararam alimentos salutares para os doentes. Muitas vezes até basta mudança de ar para recuperar a saúde. Acontece até que só um sono profundo dispensa maiores cuidados do médico. Aqui, porém, não se pode empregar nada disso; aqui, fora o bom exemplo, existe um único meio e um único caminho, isto é o aconselhamento pela palavra.

Este é o instrumento adequado, é o alimento certo, o ar salutar; é a palavra que representa remédio, fogo e ferro. É dela que se deve fazer uso quando se tornar necessário cortar e queimar. E onde a palavra nada conseguir, todas as outras coisas também não têm valor. Com a palavra levantamos a alma caída, tranqüilizamos a irritada. Pela palavra removemos eventuais excrescências da alma, acrescentamos o que falta, providenciando, desta maneira, tudo o que possa ser proveitoso para o seu bem-estar.

Encontrando alguém com vida perfeita, o exemplo dele poderá conseguir despertar o zelo e a vontade de imitá-lo; se, porém, encontrarmos alguma alma adoentada por falsas doutrinas de fé, tornar-se-á necessário o emprego intensivo da palavra, não só para a segurança da própria fé, mas também para a defesa da mesma contra os ataques inimigos de fora. Pois se alguém estivesse armado com a espada da inteligência e o escudo da fé de tal maneira que conseguisse praticar milagres, tapando com eles a boca dos insolentes e atrevidos, não necessitaria do auxílio da palavra. Ainda assim o poder da palavra de maneira alguma seria inútil, mas antes de grande proveito. O próprio Paulo serviu-se dela, apesar de provocar admiração geral com seus milagres. Ainda outro apóstolo nos recomenda o emprego da palavra dizendo:

"Estai sempre prontos a defender-vos
contra quantos exigirem justificativas
da esperança que há em vós".
I Pd. 3, 15

Pelo mesmo motivo os apóstolos entregaram o cuidado das viúvas a Estêvão e seus colegas, para poderem dedicar-se eles mesmos, mais assiduamente, ao ministério da palavra. Entretanto, não precisaríamos dedicar tanto esforço ao ministério da palavra se ainda possuíssemos o dom de praticar milagres. Já que deste dom não nos restou nem vestígio, ao passo que os inimigos nos atacam continuamente e de todos os lados, vemo-nos na necessidade de armar-nos com a palavra, quer para defender-nos dos ataques dos inimigos, quer para nós atacarmos a eles.

4.

É por isso que devemos cuidar que a palavra de Cristo habite abundantemente em nós. Devemos estar preparados não só para uma única luta; temos que enfrentar uma guerra muito variada que nos será imposta pelos mais diversos inimigos. Ainda mais. Nem todos vêm com as mesmas armas, nem nos atacam com a mesma estratégia. Quem, portanto, tiver que enfrentar a todos, de todos deverá conhecer as artimanhas. Deverá ser, ao mesmo tempo, arqueiro e atirador, guia, e guiado, soldado e general, infante e cavaleiro; deverá ser perito na terra e no mar. Nas batalhas comuns é costume que a cada um dos participantes seja confiada uma tarefa especial em que deverá ajudar a rechaçar o inimigo que ataca. Em nosso caso, porém, é diferente se quiser vencer, sem ser perito em todas as facetas da arte bélica. O demonio conhece o lado fraco - mesmo se for único - e saberá dirigir seus auxiliares justamente para lá, a fim de roubar as ovelhas. Não tentará fazê-lo verificando que o pastor possui conhecimentos suficientes para descobrir-lhe as artimanhas.

Por isso é mister armar-se em todas as direções. Enquanto uma cidade estiver bem fortificada em redor de suas muralhas, poderá rir-se de seus sitiantes porque estará segura. Logo, porém, que conseguirem abrir uma brecha na muralha, mesmo que seja apenas do tamanho de uma porta, toda a fortificação restante não adiantará mais nada.

O mesmo se dá com a Cidade de Deus. Enquanto a vigilância e a prudência do pastor a protegerem, todos os ataques dos inimigos só trarão para ele risos e zombarias, conservando os habitantes em plena segurança. Contudo, assim que alguém conseguir entrar por um dos lados, mesmo sem conquistar a cidade toda, perdê-la-á de parte em parte.

O que há de fazer no caso em que, enquanto estiver combatendo valorisamente os gregos, os judeus saquearem a cidade? - ou, enquanto domina a ambos, os maniqueus conseguirem saqueá-la? - ou, depois de ter vencido também a esses, os fatalistas entrarem na cidade dilacerando as ovelhas?

Mas para que irei enumerar todas essas heresias do demônio? Basta apenas uma única para estragar o rebanho, caso o pastor não estiver em condições de rejeitá-la. Na guerra comum a vitória ou a derrota estão nas mãos dos que combatem no campo de batalha. Aqui, porém, dá-se justamente o contrário. Muitas vezes acontece que uns combatem ao passo que a vitória é de outros que nem participaram na luta e nem por ela se interessaram. Quem não tiver muita experiência, será perfurado pela própria espada, tornando-se o escárnio de seus inimigos.

Quero esclarecer a minha afirmação à mão de um exemplo. Os seguidores da doutrina insana de Valentim e Marcião excluem do índice das Sagradas Escrituras a Lei que Deus deu a Moisés. Os judeus, porém, a veneram de tal maneira que, apesar de algumas a partir de Cristo serem ab-rogadas, teimosamente e contra a vontade de Deus continuam a observá-las em todos os seus pormenores. A Igreja de Deus evitou os exageros de ambos, seguindo o caminho médio. Não se deixa subjugar à Lei, nem permite que esta seja difamada; pelo contrário, estima-a, mesmo ab-rogada, porque em seu tempo foi de utilidade inestimável.

Esta é a medida certa que deve orientar a quem quiser discutir com ambos os lados. Caso quisesse convencer os judeus não ser conveniente continuar com a Lei e começasse a censurá-la impiedosamente, ajudaria sem dúvida aqueles heréticos que a difamam e caluniara. Caso, porém, no zelo de querer tapar a boca desses, a louvasse e admirasse sobremaneira, como se ainda fosse necessária para o nosso tempo, certamente encorajaria os judeus a dela se gabarem ainda mais.

Foi desta maneira que os seguidores da doutrina absurda de Sabélio e os partidários tolos de Ario apostataram da verdadeira fé. Ambos continuam a chamar-se "cristãos"; no entanto, ao examinarmos suas doutrinas, constatamos que uns não são nada melhores do que os judeus, distinguindo-se apenas deles pelo nome, e os outros se aproximam da heresia de paulo de Samósata, encontrando-se ambos fora da verdade.

É portanto deste lado que podem surgir grandes perigos. O caminho é estreito e pesado, ameaçado por precipícios em ambos os lados, oferecendo o perigo de, procurando escapar de um, cair no outro. Assim, afirmando-se que existe um só Deus, Sabélio de imediato relaciona essa expressão com sua doutrina absurda. Distinguindo-se, porém, e dizendo-se que um é o Pai, outro é o Filho e outro o Espírito Santo, Ario levanta-se relacionando essa diferença das pessoas com a diferença da natureza. Devemos evitar tanto a ligação de um quanto a separação do outro, confessando uma só divindade no Pai, no Filho e no Espírito Santo, acrescentando, porém, a diferença das três pessoas. Só assim poderemos refutar os ataques de ambos. Poderia enumerar outras discussões complicadas, cuja refutação, não sendo cuidadosa e prudente, facilmente poderá vulnerar-nos a nós mesmos.

5.

O que vou dizer, finalmente, sobre as questões absurdas de nossos partidários? Estas não são de menos importância do que os ataques de fora, até chegam a exigir maiores cuidados da parte dos instrutores espirituais. Uns, movidos apenas pela curiosidade, sem outro motivo ou razão, querem ocupar-se com questões, cujo conhecimento não traz proveito, escapando até à nossa restrita inteligência. Outros procuram esclarecimento a respeito da justiça divina, querendo medir a profundidade do abismo do qual diz o salmista:

"Vossos juízos são profundos como o mar".
Sl. 35, 7

E, conquanto sejam poucos os que cuidam da verdadeira fé e de uma vida reta, há muitos mais que, apenas por curiosidade, se ocupam de questões inúteis, querendo penetrar no inescrutável, provocando com isso a ira divina.

Pois nunca chegaremos a saber as coisas cujo conhecimento Deus nos quer esconder. O resultado dessas pesquisas só pode trazer-nos perigos.

Mesmo assim e não obstante tudo isso, se alguém quiser silenciá-los baseado apenas em sua autoridade, contrai a fama de prepotente ou ignorante. Por conseguinte, o bispo também nisso deverá usar de extraordinária prudência para, de um lado, evitar que tais questões sejam levantadas e, de outro, livrar-se das acusações citadas.

Para vencer todas estas dificuldades não temos outro meio além do poder da palavra. E se o bispo carece desse poder, as almas dos que lhe são confiados - isto é, os fracos e curiosos - encontram-se na mesma situação dos navios que têm que enfrentar continuamente as tempestades do mar: É por isso que o sacerdote deverá empregar todos os esforços ao alcance do poder da eloqüência.

Por que então Paulo - interrompeu-me Basílio - não empregou esforço algum para aperfeiçoar-se nisso? Ele não só não esconde ser inexperiente na eloqüência, mas até o confessa expressamente. Escreve-o expressamente aos Coríntios que se distinguiam pela eloqüência e até dela se orgulhavam.

6.

Foi justamente isso - retruquei - que levou muitos a se perderem, tornando-se indiferentes à doutrina verdadeira. Uma vez que não conseguiram compreender a profundidade do pensamento do apóstolo nem penetrar no sentido de suas palavras, passaram o seu tempo em anuir com a cabeça e escancarar a boca, defendendo a doutrina que não é aquela de que o apóstolo se gloria, mas da qual ele se encontra tão distante como nenhum outro debaixo do céu.

Mas deixemos esta questão para mais tarde. Por enquanto apenas quero dizer isto: suponhamos que Paulo realmente tivesse sido inexperiente na eloqüência. O que significaria isso para o tempo de hoje? Paulo tinha um poder muito mais valioso do que o da palavra com que conseguiu realizar muito mais. Bastava mostrar-se em público, sem falar palavra alguma, para afugentar os demônios. Todos os que vivem hoje, mesmo unindo-se em orações e lágrimas, não conseguiriam o que, naquele tempo, o cinto de Paulo conseguiu.

Paulo, com sua oração, ressuscitou mortos e praticou tantos outros milagres que os pagãos chegaram até a considerá-lo um deus. E mais ainda, antes de morrer, foi considerado digno de ser arrebatado até o terceiro céu, ouvindo palavras inefáveis e impossíveis de serem pronunciadas por um homem. Por isso, com relação aos que vivem hoje, só posso manifestar o meu espanto pelo fato de eles não recearem compararse com tal homem, sem com isso querer ofendê-los ou amargurá-los. Porque mesmo abstraindo dos milagres e considerando apenas a vida e a conduta angelical de Paulo, verás que este soldado de Cristo conseguiu mais vitórias por sua vida do que por seus milagres.

Como poderíamos descrever seu zelo, sua prudência, seus contínuos perigos suportados, seus cuidados incessantes, seu medo e sua solicitude pelas Igrejas, sua compaixão para com os fracos, seus múltiplos tormentos, as repetidas perseguições e, finalmente, seu morrer diário? Qual o lugar deste mundo, qual o país, qual o mar que não tenha conhecido as lutas deste justo? Até o deserto inabitado o conheceu, dando-lhe acolhida por diversas vezes. Sofreu perseguições de toda a espécie e alcançou triunfos em todos os lados. Jamais lhe faltaram lutas nem coroas.

Mas não sei como chego à ousadia de apoucar tal homem! Pois seus feitos admiráveis superam qualquer tentativa de descrevê-los com palavras, principalmente com as minhas palavras tão carentes de eloqüência. Mesmo assim não posso dispensar-me de dizer ainda tudo o que segue e que supera tudo quanto foi dito até agora, na mesma medida em que a pessoa de Paulo supera todos os outros homens, esperando que o Santo não me julgue pelas fracas palavras, mas unicamente pela boa intenção.

O que tenho a dizer? Depois de ter conseguido tamanhos resultados, depois de ter alcançado tantas vitórias, manifestou o desejo de ser banido para o inferno e entregue ao castigo eterno, se, com isso, conseguisse salvar os judeus e levá-los a Cristo; justamente aqueles mesmos judeus que repetidas vezes o tinham apedrejado e até tentado matá-lo. Quem jamais amou tanto a Cristo? Se é que isso ainda possa ser chamado de amor e não mereça nome que signifique mais do que amor. Porventura ainda poderemos tentar compararnos com ele que recebeu tantas graças do alto e tamanha virtude tem mostrado? Acaso existiria algo mais temerário do que isso?

Agora, no que segue, procurarei provar que Paulo também não era ignorante no sentido dos homens anteriormente mencionados. Eles chamam de "ignorantes" não apenas os que não são versados nas ilusões das ciências pagãs, mas também os que se mostram incapazes de lutar pelas doutrinas da verdade. E com toda razão? Paulo, porém, não confessou ser inexperiente em ambos os sentidos, mas em um só. E ao afirmar isso, distinguiu bem, dizendo:

"inexperiente que eu seja na eloqüência,
não o sou contudo quanto à ciência".
II Cor. 11, 6

Caso exigíssemos (do sacerdote) a lisura de um Sócrates, a pujança de um Demóstenes, a dignidade de um Tucídides e o espírito profundo de um Platão, contra isso valeria esse testemunho de Paulo. Agora deixo tudo isso de lado, todos esses ornamentos dos escritores pagãos e não me importo com estilo e expressão. Pois o modo de falar pode ser pobre, a composição das frases pode ser simples e sem arte, somente, quanto à clareza e segurança nas verdades da fé, ninguém se pode mostrar inexperiente e ignorante, sobretudo quando se quiser invocar o testemunho do apóstolo para encobrir a própria ignorância.

7.

De que maneira - dize-me - refutou ele os judeus que moravam em Damasco, mesmo no tempo em que ainda não tinha começado a operar milagres? Como conseguiu superar os helenistas? Por que foi mandado para Tarso? Acaso não foi unicamente porque os vencera a todos com o poder de suas palavras, apertando-os de tal maneira que, irritados, o procuraram matar? No entanto, naquele tempo ainda não tinha começado a operar milagres. Assim também não se pode afirmar que a multidão do povo o tenha venerado por causa de seus milagres, nem que seus adversários tenham temido essa estima que gozara junto ao povo. Pois até aí mostrara seu poder apenas em suas palavras. Como lutou contra os que em Antioquia tentaram judaizar a todos? E aquele Areopagita daquela cidade supersticiosa, - não foi pela palavra do apóstolo, proferida perante o povo que ele, junto com aquela mulher Dâmaris, aderiram a ele? Como foi que aconteceu que Eutíquio caiu da janela? Não foi por que ficara noite adentro para ouvir as palavras do apóstolo? E, finalmente, o que Paulo fez em Tessalonica, em Corinto, em Éfeso e mesmo em Roma? Não passava dias e noites explicando as escrituras? E o que vamos dizer ainda sobre suas discussões com os epicureus e estóicos? Se quisesse enumerar tudo, prolongar-me-ia demais. Ora, se consta que Paulo serviu-se sobremaneira da palavra - tanto antes da prática de milagres quanto durante a mesma - como é que alguém pode ousar taxálo de inexperiente justamente naquilo em que mereceu a admiração do povo? Por que os Licaônios o julgavam ser Hermes? Que Paulo e Barnabé foram considerados deuses não era conseqüência de seus milagres, mas de sua eloqüência.

Em que este santo se distinguiu ainda de todos os outros apóstolos? Donde vem que seu nome é conhecido pelo mundo inteiro e está na boca de todos? Donde vem que é o mais admirado dos apóstolos não só entre nós, mas também entre os judeus e gregos? Acaso não será por suas cartas tão brilhantes? Por elas distribuiu bênçãos não somente aos fiéis de sua época, mas também aos que abraçaram a fé no decorrer dos tempos até hoje. Por elas ainda serão abençoados todos, até a vinda de Cristo, e enquanto durar o gênero humano, não perderão seu efeito. Como uma fortaleza construída de aço, suas cartas protegem todas as Igrejas do mundo, e, como vencedor entre os soldados mais bravos, ele também está no meio de nós,

"subjugando todo o pensamento à obediência de Cristo,
e destruindo os sofismas bem como a altivez
que se arvora contra o conhecimento de Deus".
II Cor. 10, 5

Tudo isso o apóstolo o conseguiu por meio das suas cartas admiráveis que nos deixou e que estão repletas de sabedoria divina. E estes escritos nos são sobremaneira úteis não só para refutar doutrinas falsas e defender as retas, mas também para ensinar-nos o verdadeiro modo de vida. Ainda hoje os superiores das Igrejas servem-se destas cartas para fazer crescer a virgem imaculada - a Igreja - que (por Paulo) foi "desposada" a Cristo, instruindo-a e conduzindo-a à formosura espiritual. Por meio destas cartas eles também preservam esta virgem das doenças que a ameaçam, conservando-lhe a saúde constante. São estes os remédios que nos deixou o "tal ignorante", remédios de um efeito extraordinário, conhecido por todos que deles se servem.

8.

Escuta agora os conselhos que Paulo dá a seu discípulo:

"Aplica-te à leitura, à exortação e ao ensino"!
I Tm. 4, 13

Ainda acrescenta qual o fruto que disto lhe resultará:

"Perseverando nestas disposições,
salvarás a ti e aos que te escutam".
I Tm. 4, 16

E ainda:

"Um servidor do Senhor não deve entregar-se a discussões,
mas ser manso para com todos,
pronto para instruir e paciente".
II Tm. 2, 24

E, continuando diz ainda

"Tu, porém, permanece firme naquilo que aprendeste
e de que tens convicção.
Sabes de que mestres o aprendeste.
E desde a infância conheces as sagradas letras
que te podem dar a sabedoria que conduz à salvação".
II Tm. 3,14-15

E ainda:

"Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar,
convencer, corrigir e educar na justiça,
a fim de que o homem de Deus seja completo,
equipado para toda a boa obra".
II Tm. 3-16-17

Em seguida, escuta o que ele impõe a Tito, falando-lhe sobre a instalação dos bispos:

"O bispo seja firmemente apegado à palavra autêntica,
conforme o ensinamento recebido,
para que seja capaz de exortar segundo a sã doutrina
e refutar os que a contradizem".
Tt. 1, 9

Como é que um "ignorante", como os homens mencionados o chamam, poderá refutar e silenciar os que contradizem? Para que seria útil ocupar-se com a leitura das Escrituras, se devêssemos aceitar a propalada "ignorância"? O que eles apresentam não é senão preconceito e pretexto para encobrir sua leviandade e indolência.

Entretanto - interrompeu Basílio - é isto que se impõe aos sacerdotes. Realmente - retruquei - falamos dos sacerdotes. Que Paulo, porém, também visava os súditos, conclui de outra carta dele:

"Que a palavra de Cristo habite abundantemente em vós".
Cl. 3, 16

E ainda:

"A vossa conversação seja sempre amável,
condimentada com sal,
respondendo a cada um como convém".
Cl. 4, 6

É pois para todos que vale a palavra

"prontos sempre a defender-vos".
I Pd. 3, 15

Aos tessalonicenses Paulo escreve:

"Por isso, confortai-vos mutuamente
e edificai-vos uns aos outros,
como já o fazeis".
I Ts. 5, 11

Falando dos sacerdotes, no entanto, ele expressa-se da seguinte forma:

"Os presbíteros que presidem corretamente,
sejam remunerados com duplas honras,
principalmente os que se entregam aos pesados labores
da pregação e do ensino".
I Tm. 5, 17

É esta a finalidade mais nobre dos ensinamentos: que os que ensinam, conduzem para a vida feliz junto com Cristo pelo exemplo não só do que fazem, mas também pelo que dizem. O agir apenas não basta na instrução verdadeira.

Esta não é opinião minha, mas do próprio Salvador:

"Quem cumprir e ensinar (os mandamentos),
este será tido como grande no reino dos céus".
Mt. 5, 19

Se o cumprimento já incluísse ensinamentos, não precisaria do segundo verbo; pois teria sido suficiente dizer apenas "quem cumprir". Assim, porém, mostrou que distingue os dois conceitos, relacionando um às obras e outro às palavras e, para a edificação certa, ambas são necessárias. Ou não te lembras do que Paulo disse aos presbíteros de Éfeso?

"Vigiai, lembrando-vos de que durante três anos, dia e noite,
não cessei de exortar entre lágrimas a cada um de vós"?
At. 20, 31

Para que lágrimas, para que exortações por meio de palavras, quando a própria vida do apóstolo já era um exemplo tão claro? A vida exemplar, por sua vez, pode ser capaz de ajudar bastante na obediência aos mandamentos. Apesar disso, jamais ousaria afirmar que o exemplo só seja suficiente.

9.

Um exemplo. No caso de surgirem diferenças de opinião a respeito de uma doutrina de fé e todos basearem sua opinião no mesmo texto da Escritura, de que adianta em tal caso o modo de vida dos disputantes? Qual a utilidade para quem na vida prática consegue grandes resultados, se depois de todos os seus esforços, devido à ignorância, cair em heresia separando-se do Corpo de Cristo? E isso, eu bem o sei, já aconteceu a muitos. O que então lhe adianta sua resignação, seu autodomínio? Nada, ou tanto quanto adiantaria a verdadeira fé a um homem de má conduta. É por isso que quem for chamado para ensinar os outros deve dispor de experiência extraordinária nessas discussões. Mesmo que esteja absolutamente firme no que diz respeito à sua própria pessoa e seja duro sofrer prejuízo da parte dos adversários, jamais vale o mesmo para a grande multidão dos ingênuos confiada a ele. Pois esta, vendo ser derrotado seu superior sem poder enfrentar os adversários, atribui a culpa desta derrota não à imperícia do superior, mas à falta de segurança na respectiva doutrina da fé.

E assim acontece que uma grande multidão se perca pela ignorância de um único homem. Mesmo que não debandem por completo para o lado dos adversários, sempre sentir-se-ão tentados a duvidar de doutrinas que deveriam ser objeto constante de sua fé, e assim nunca mais conseguirão continuar firmes nas verdades que, até então, afirmavam com fé absoluta e inabalável. Ao contrário, em conseqüência da derrota de seu pastor sua alma será sacudida por tais tempestades cujo fim só pode ser o naufrágio. Qual a culpa, quão ingente o fogo que se acumulam por cima da cabeça do causador de tal desgraça, não precisas ouvir de mim, tu mesmo o sabes perfeitamente.

Ora, como podem chamar de soberba e ambição de eu me ter eximido de tal culpa e de tal castigo? Quem ainda poderá afirmar tal disparate? Ninguém, a não ser quem costumar censurar sem motivo ou gozar da desgraça alheia.


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