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Padres da Igreja
A formação de Uma Virgem e a Virgindade Perpétua de Maria

Ambrosius Mediolanensis

De Institutione virginis et Sanctae Mariae virginitate perpetua

Ad Eusebium

 

Tradução e notas do Padre Zé (2016)

 

AMBRÓSIO DE MILÃO

A FORMAÇÃO DE UMA VIRGEM E A PERPÉTUA VIRGINDADE DE SANTA MARIA

A EUSÉBIO[1]

 

Capítulo 1

O destinatário do Tratado. A oração e o silêncio fazem parte da identidade da virgem

 consagrada.

 

1. Commendas mihi pignus tuum, quod aeque est meum, Ambrosiam Domini sacram: et pio affectu eius tibi asseris praestantiorem reliqua sobole sollicitudinem. Et vere ita est apud mentem fidelem; caeteros enim instituis, ut emittas domo, atque alienis copules, istam semper tecum habebis: in caeteris quoque paternae uteris pietatis necessitudine; in hac ultra patrem procedis, votoque et studio progrederis, ut placeat Deo. Quae cum sit praestantior causa votorum; sola tamen solvat quidquid pro se et pro omnibus filiis debes.

 2. Hoc est sacrificium quod Abel obtulit ex primitivis ovium suarum fetibus (Gen. IV, 4). Quod et Apostolus prae caeteris laudat, ad Corinthios dicens: «Quoniam qui statuit in corde suo firmus, et iudicavit in corde suo servare virginem suam, bene facit. Igitur et qui matrimonio iungit virginem suam, bene facit: et qui non iungit, melius facit» (I Cor. VII, 37, 38). Unde pulchre David cum descripsisset Ecclesiae gratiam, cuius omnis intus est gloria, non foris (in bonis enim cogitationibus, atque immaculato castitatis affectu, et sincerae proposito conscientiae summa est laus), subtexuit dicens: «Afferentur Regi virgines post eam» (Psalm. XLIV, 15). Et conversus ad dominum Patrem: «Proximae, inquit, eius afferentur tibi: afferentur in laetitia et exsultatione, adducentur in templum regis» (Ps. XLIV, 16).

 

3. Quae est proxima, nisi quae Christo propinquat, cui dicit Verbum: «Exsurge, veni, proxima mea, formosa mea, columba mea; quia ecce hyems praeteriit» (Cant. II, 10, 11)? Antequam Verbum Dei reciperet, hyems erat inhonora, sine fructu: ubi Verbum Dei recepit, et mundus ei est crucifixus, aestas est facta. Denique fervore sancti Spiritus vaporata, flos esse coepit, et spirare odorem fidei, fragrantiam castitatis, suavitatem gratiae. 

 

4. Unde et alibi addit: «Oculi tui columbae extra taciturnitatem tuam» (Cant. IV, 1); eo quod tota spiritalis et simplex sicut columba, in cuius specie visus est a Ioanne descendere Spiritus sanctus, spiritalia videat, et noverit ea quae viderit tacere mysteria. Non enim mediocris virtus tacere; est enim et tempus tacendi, sicut tempus loquendi (Ecclo, III, 7), sicut et scriptum est: «Dominus dat mihi linguam eruditionis, ut sciam quando oporteat dicere sermonem» (Esai. L, 4).

5. Virginitatis itaque dos quaedam est verecundia, quae commendatur silentio. Ideo et Ecclesiae gloria intus est, non utique in multiloquio, sed in sensibus vel in penetralibus sacramentorum, sicut ipsa dicit ad Sponsum: «Quis dabit te fratrem mihi lactantem ubera matris meae? Inveniens te foris osculabor te, et quidem non spernent me. Assumam te, et ducam te in domum matris meae, et in secretum eius quae concepit me» (Cant. VIII, 1, 2). Et supra ait: Introduxit me rex in cubiculum suum (Cant. I, 3).

 6. Foris osculatur Ecclesia Christum, et ab eo in cubiculum introducitur. Osculatus est eam foris, quando «Tamquam sponsus procedens de thalamo suo, exsultavit tamquam gigas ad currendam viam» (Psalm. XVIII, 6). Tamquam gigas foris est; quia non rapinam arbitratus esse se aequalem Deo, formam servi accepit (Phil. II, 6, 7). Foris ergo factus est, qui erat intus. Vide illum intus, quando legis quod in sinu est patris: cognosce illum foris, quando nos quaerit, ut redimat. Foris sibi factus est, ut mihi intus esset, et fieret medius nostrum.

7. Ibi ergo simus, ubi Christus medius est, radicatus et fixus in cordibus nostris. Et ideo sicut ipse praecepit: Cum oras, intra in cubiculum tuum (Matth. VI, 6), et effunde super te animam tuam; cubiculum tuum interiorum secretum est, cubiculum tuum conscientia tua est. Denique Ecclesiastes tibi dicit: Et quidem in conscientia tua regi ne maledixeris, et in penetralibus cubiculorum ne maledicto devoveris divitem (Eccles. X, 20). Ibi ergo ora et ora in occulto, ut audiat te qui in occulto audit: et «ora sine ira et disceptatione», abdicato occulto dedecoris (ITim. II, 8): Iustus enim non proditionem criminis metuit, sed contagionem.

1. Tu recomendas-me o teu penhor da nossa amizade[2], que é igualmente meu: Ambrósia, a consagrada do Senhor. Com o teu piedoso afecto por ela, tu garantes para ti mesmo um benefício maior do que o resto da tua prole te poderia dar. E na verdade é isso que tens na tua mente cristã. Tu educas os outros [filhos], para os fazeres sair de casa e casá-los com estranhos. Esta, porém, tê-la-ás sempre contigo[3]. Com os outros tu também fazes uso dos deveres da piedade paterna, mas com esta tu vais mais além das obrigações de um pai e procuras com anseio e com empenho que ela agrade a Deus. Sendo ela o maior motivo dos teus anseios, que seja ela a pagar sozinha por todos os deveres que tu tens para com ela e para com os outros filhos.    

2. Este é o sacrifício que Abel ofereceu a partir dos primogénitos das suas ovelhas (Gen. 4, 4). É isto que também o Apóstolo louva mais que tudo, dizendo aos Coríntios: «Se alguém tomou a firme resolução no seu coração, e resolveu no seu íntimo guardar a sua filha virgem, faz bem. Portanto, aquele que casa a sua filha virgem faz bem; e quem a não casa ainda faz melhor» (1Cor. 7, 37-38). Por isso David, descrevendo a beleza da Igreja, cuja glória é toda ela interior e não exterior (pois a maior honra está nos bons pensamentos, no afecto imaculado da castidade e no propósito de uma consciência recta) muito bem acrescentou: «Será apresentada ao Rei e seguem-na as virgens» (Sl. 44, 15). E voltando-se para o Senhor e Pai, diz: «As suas amigas ser-vos-ão apresentadas. Serão apresentadas com alegria e entusiásmo, serão conduzidas ao templo do rei» (Sl. 44, 16).

 

3. Que amiga é esta, senão aquela que está próxima de Cristo, a quem o Verbo diz: «Levanta-te e vem daí, amiga minha, formosa minha e minha pomba, porque o inverno já passou» (Cant. 2, 10-11)? Antes de receber o Verbo de Deus ela era um inverno sem beleza e sem fruto. Quando recebeu o Verbo de Deus, o mundo foi crucificado para ela e fez-se verão. Por fim, bafejada pelo fervor do Espírito Santo, ela começou a florir e a exalar o odor da fé, a fragância da castidade, a suavidade da graça.

 

4. Por isso a Escritura acrescenta noutra passagem: «Teus olhos são pombas, por detrás do teu véu» (Cant. 4, 1), porque ela, toda espiritual e simples como uma pomba, em cuja figura João viu descer o Espírito Santo, vê as coisas espirituais e sabe calar os mistérios que viu. Calar não é uma virtude pequena, pois há um tempo para calar e um tempo para falar (Eclo, 3, 7), tal como também está escrito: «O Senhor Deus deu-me uma língua que ensina, para saber quando devo falar» (Is. 50, 4).

5. Assim, o dom da virgindade é uma espécie de pudor que se remete ao silêncio. Também por isto a glória da Igreja é interior, não está realmente no palavreado, mas nos sentimentos ou no recôndito dos mistérios, tal como ela diz ao esposo: «Quem dera fosses meu irmão, amamentado aos seios da minha mãe! Ao encontrar-te na rua beijar-te-ia, sem censura de ninguém. Eu tomar-te-ia e te levaria para casa de minha mãe, para o recôndito daquela que me concebeu» (Cant. 8, 1-2). E mais acima diz: «O rei introduziu-me nos seus aposentos» (Cant. 1, 3)

 6. Na rua, a Igreja beija a Cristo e é introduzida por Ele nos seus aposentos. Ele beijou-a na rua, quando «saiu, como um esposo do seu tálamo, a percorrer alegremente o seu caminho, como um herói» (Sl. 18, 6). Na rua está como herói, porque, ao não considerar uma usurpação o ser igual a Deus, assumiu a condição de servo (Filip. 2, 6). Portanto apresentou-se no exterior quem estava no interior. Reconhece aquele interior, quando lês o que está no seio do Pai. Reconhece aquele exterior, quando Ele nos procura, para nos redimir. Apresentou-se no exterior, para me ter no interior e ficar no meio de nós.

7. Portanto situemo-nos onde Cristo é o centro, radicado e fixado nos nossos corações. Por isso, conforme ele próprio manda: «Quando rezares, entra no teu quando» (Mt. 6, 6), derrama a tua alma sobre ti mesmo. O teu quarto é o teu recôndito interior, o teu quarto é a tua consciência. Enfim, também o Eclesiastes te diz: «Não digas mal do rei, nem mesmo em pensamento; não digas mal do rico, nem mesmo a sós no teu quarto» (Ecles. 10, 20). Então reza aí, reza no segredo, para que te ouça Aquele que ouve no segredo. «Reza sem ira nem altercação» (1Tim. 2, 8), renunciando ao segredo da desonra. Com efeito o justo não teme a vingança do crime, mas o seu contágio.

 

Capítulo 2

Como deve ser a oração bem feita e as suas partes. A relação carne versus espírito e a harmonia entre ambos na formação do carácter de uma virgem.

 

8. Quam bona oratio cum misericordia! Bona oratio quae ordinem servat, ut primo a divinis inchoemus laudibus. Si enim cum apud hominem agimus, benevolum volumus iudicem facere, quanto magis cum Dominum nostrum precamur! Primo ergo immolemus Deo sacrificium laudis; unde et Apostolus ait: «Obsecro ergo primo omnium fieri orationes, obsecrationes, postulationes, gratiarum actiones» (I Tim. II, 1).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

9. Doceat te Davidicus psalmus octavus, qui coepit a Dei laudibus: «Domine Dominus noster, quam admirabile est nomen tuum in universa terra! Quoniam elevata est magnificentia tua super coelos. Ex ore infantium et lactentium perfecisti laudem» (Psal. VIII, 2 et seq.). Hactenus oratio: inde sequitur obsecratio, ut destruatur inimicus: postulatio, ut lunam et stellas videat; lunam Ecclesiam, stellas filios Ecclesiae, coelestis gratiae luce fulgentes: et quod petit, prophetico spiritu visurum se esse promittit: gratiarum actio, quod tuetur Dominus hominem, et hunc limum corporis nostri divina visitatione confirmat; vel quod homini animantium genera universa subiecit.

 

 

 

10. Similiter et Dominica oratio omnia comprehendit, quam vulgare non opus est. Tu autem qui legis, quemadmodum distinguere debeas recognosce; praecipue tamen, ut dixi, commendanda est oratio, sicut praemisi, placiditate animi et tranquillitate; ut unusquisque sibi constet et congruat, et fiat illud quod scriptum est: «Si duobus ex vobis convenerit super terram, de omni re quamcumque petierint, fiet a Patre meo, qui in coelis est. Ubi enim sunt duo vel tres congregati in nomine meo, ibi ego sum in medio eorum» (Matth. XVIII, 19, 20).

 

11. Qui sunt isti duo, nisi anima et corpus? Unde et Paulus castigabat carnem suam, et servituti redigebat (ICor. IX, 27); ut esset animae tamquam imperatrici suae caro subdita, et mentis imperiis obtemperaret; ne esset in uno homine dissidium, ac bellum intra se gereret, et legi mentis repugnaret lex corporis. Duo igitur ista diversa ratione quadam et pace iungebat, secundum quod ipse asseruit dicens: «Quia Christus est pax nostra, qui fecit utraque unum, et medium parietem sepis solvit, inimicitias in carne sua» (Ephes. II, 14); ne id ageret, quod nollet: atque id faceret, quod odisset. Isti ergo sunt duo, anima et caro. Unde et David ait: «Non timebo quid faciat mihi caro» (Psal. LV, 5), quam adversariam animae suae nosset.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

12. Quae tamen duo, ut evidentius exprimamus, non solum duo sunt, sed etiam duo homines, unus interior, alter exterior. Isti duo si sibi propositi aequalitate concurrant, ut cogitationes factis, et cogitationibus facta conveniant; vitae nostrae rota sine ulla offensione volvetur, ut quemadmodum scriptum est: «Fiat vox tonitrui tui in rota» (Psal. LXXVI, 19). Isti igitur duo unum sunt; nec solum unum, sed unus homo. Unde et Apostolus ait: «Ut duos conderet in uno homine, faciens pacem, et reconciliaret utrosque in uno corpore, Deo, per crucem interficiens inimicitias in semet ipso... Ut in utrisque accessum habeamus in uno Spiritu ad Patrem» (Ephes. II, 15 et seq.).

 

 

13. Sunt etiam duo homines, vetus et novus. Vetus ille peccato obnoxius et obsoletus, ac vestimenti veteris similitudine attritus et scissus, quem in baptismate affigimus cruci. Unde Apostolus ait: «Quia vetus homo noster simul affixus est cruci, ut destruatur corpus peccati, ut ultra non serviamus peccato» (Rom. VI, 6). Vetus ergo affigitur, ut moriatur peccato; ut novus resurgat, qui renovatur per gratiam. Diximus de duobus.

 

 

14. Fortasse dicat aliquis: Quid de tribus dicis, quoniam sic habet Scriptura: «Ubi enim sunt duo vel tres congregati in nomine meo, ibi ego sum in medio eorum» (Matth. XVIII, 20)? Hinc quoque ratio manifesta est; quia idem Apostolus dicit: «Ipse autem Deus pacis sanctificet vos per omnia, ut integer spiritus vester, et anima, et corpus sine querela in die adventus Domini nostri Iesu Christi serventur» (I Thess. V, 23). Ubi ergo tres isti integri, ibi Christus est in medio eorum: qui hos tres intus gubernat et regit, ac fideli pace componit.

 

15. Haec igitur tria integra prae caeteris in se virgo custodiat; ut nullam det sacrae virginitatis querelam, et sit inoffensa, sine ruga, sine macula. De qua licet frequentibus libris dixerimus, tamen memorati pignoris causa, hunc ad te librum condendum arbitrati sumus.

8. Como é boa a oração com a misericórdia! A oração bem feita é a que respeita a ordem das suas partes, sendo que primeiro devemos começar pelos louvores divinos. Com efeito, se nós, quando vamos junto de um homem, queremos que ele seja um juiz que nos trate com benevolência, quanto mais quando suplicamos ao nosso Deus! Em primeiro lugar, portanto, ofereçamos a Deus um sacrifício de louvor. Por isso é que o Apóstolo diz: «Recomendo, pois, antes de tudo, que se façam preces, orações, súplicas e acções de graças» (1Tim. 2, 1).

 

9. Aprende com o Salmo oitavo de David, que começa pelos louvores de Deus: «Senhor nosso Deus, como é admirável o vosso nome em toda a terra! A vossa majestade está acima dos céus. Da boca das crianças e meninos de peito alançastes o louvor perfeito» (Sl. 8, 2-3). Até aqui é a oração, depois vem a súplica, para que o inimigo seja destruído. A seguir vem o pedido para que saiba contemplar a lua e as estrelas. A lua é a Igreja, as estrelas são os filhos da Igreja refulgentes da luz da graça celeste[4]. Depois garante com espírito profético que ele há-de ver aquilo que pede. Por fim, vem a acção de graças, porque o Senhor protege o homem, fortalece este barro do nosso corpo com a sua visita divina, e submete ao poder do homem todas as espécies de animais.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

10. De maneira semelhante também a oração do Senhor engloba tudo isto e não é necessário expô-la aqui. Tu, porém, que a lês, reconhece como deves distinguir as suas diversas partes. Principalmente – repito – a oração deve ser feita como eu já disse atrás: com serenidade e tranquilidade de espírito, para que cada um seja firme e coerente e se cumpra aquilo que está escrito: «Se dois de entre vós se unirem, na Terra, para pedir qualquer coisa, hão-de obtê-la de meu Pai que está no Céu. Pois, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt. 18, 19-20).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

11. Quem são estes dois, senão a alma e o corpo? Por isso é que Paulo castigava a sua carne e a reduzia à escravidão (1Cor. 9, 27), para que a carne estivesse submetida à sua alma como a uma imperatriz, e obedecesse às ordens do espírito, para não haver dentro do mesmo homem qualquer dissenção, nem dentro de si se travar batalha, nem a lei do corpo se opor à lei do espírito. Portanto ele unia estes dois elementos diversos na razão e na paz, segundo o que ele mesmo afirma, dizendo: «Cristo é a nossa paz, Ele que, de dois povos, fez um só e destruiu o muro de separação, a inimizade na sua carne» (Ef. 2, 14), para não fazer o que não queria, nem fazer o que odiava. Por conseguinte existem estes dois: o espírito e a carne. Por isso também David dizia: «Não temerei o que me possa fazer a carne» (Sl. 55, 5). Carne que ele bem sabia que era inimiga da sua alma.

 

12. Esses dois elementos, todavia, para sermos ainda mais claros, não são apenas dois elementos, mas são também dois homens, um inteior e outro exterior. Se estes dois, colocados lado a lado, concorrem em harmonia, de tal forma que os pensamentos correspondam aos factos e os factos aos pensamentos, a roda da nossa vida gira sem nenhuma perturbação, como está escrito: «O Ruído do teu trovão ecoou na roda» (Sl. 76, 19). Sendo assim, estes dois são um só; e não uma só coisa, mas um só homem. Por isso também diz o Apóstolo: «Para de dois criar em si próprio um só homem, fazendo a paz, e para os reconciliar com Deus, num só Corpo, por meio da cruz, matando assim a inimizade em si mesmo… É por Ele que uns e outros, num só Espírito, temos acesso ao Pai» (Ef. 2, 15-18).

 

13. Há dois homens: o velho e o novo. O velho é escravo e enfraquecido e, à semelhança de um vestido velho, está gasto e rasgado. Foi esse que nós crucificamos no baptismo. Por isso diz o Apóstolo: «O homem velho que havia em nós foi crucificado, para que fosse destruído o corpo pertencente ao pecado; e assim não sermos mais escravos do pecado» (Rom. 6, 6). Portanto o velho é crucificado, para morrer para o pecado. Que surja o novo, que é renovado pela graça. Dissemos isto de dois.

 

14. Talvez alguém pergunte: que é que dizes de haver três, visto que na Escritura se diz assim: «Onde dois ou três se reunirem em meu nome, eu estarei no meio deles» (Mt. 18, 20)? Aqui também a explicação é clara, porque o mesmo Apóstolo diz: «Que o Deus da paz vos santifique totalmente, e todo o vosso ser - espírito, alma e corpo - se conserve irrepreensível para a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo» (1Tess. 5, 23). Portanto, onde estiverem intactos estes três, aí está Cristo no meio deles, que os guia e governa e os mantém na paz fiel.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

15. Que a virgem, mais que os outros, guarde intactos estes três elementos em si mesma, para não pôr em causa a santa virgindade, e para que seja irrepreensível, sem mancha nem ruga. Embora tivéssemos falado dela em muitos livros[5], todavia, em atenção à tua filha, resolvi fazer este livro para ti.

 

Capítulo 3

Elogio da virgindade e defesa do sexo feminino.

 

16. Bona virginitas, quae sexum utrumque non solum absolvit a crimine, verum etiam provocavit ad gratiam. Accusamus autem plerumque femineum sexum, quod erroris causam invexerit: et non consideramus quanto iustius in nos obiurgatio retorqueatur. Nam ut repetamus a principio, et rerum exordia interrogemus, quantum ei delatum sit, investigabimus: et quam in misera conditionis humanae fragilitate femina tamen invenerit gratiam.

 

17. Nam cum omnia opera sua laudaverit Deus, coelum, terram, maria, noctem et diem, quod iste profecerit ad usum laboris, illa ad fructum quietis, laudaverit feras bestias; ubi ad hominem ventum est, solus non videtur esse laudatus, propter quem omnia generata sunt (Gen. II, 10 et seq.). Quae igitur causa est, nisi forte ea, quia alia in specie sunt, homo in occulto? Nihil in bestiis plus reperias, quam quod videtur: in homine nihil est inferius, quam quod videtur; qui cum ex animo constet et corpore, hoc utique in eo servit, quod videtur: illud quoque in eo regit, quod non videtur.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

18. Merito ergo alia in exordio laudantur, istius laudatio non promitur, sed reservatur; quia aliorum gratia foris, huius intus est: aliorum in nativitate, huius in corde. Quid enim tam altum et tam profundum, quam mens hominis, quae quasi involucro quodam corporis tegitur et occultatur; ut eam haud facile quisquam introspicere et speculari queat? Ideo ergo homo non ante laudatur, quia non in forensi pelle, sed in interiore homine ante probandus, sic praedicandus est: quem praeclare definivit apostolus Petrus dicens «absconditum esse cordis hominem in incorruptione quieti et modesti spiritus, qui est ante Deum locuples» (IPetr. III, 4).

 19. Merito ergo differtur, ut sequatur fenerata eius laudatio: cuius dilatio non dispendium, sed incrementum est. Nemo ergo se despiciat quasi vilem, nec contuitu corporis sese aestimet. Nam etsi dixerit sanctus Iob: «Nudus exivi de ventre matris meae, nudus et hinc abibo» (Iob. I, 21); habuit tamen quo non solum inter homines, sed etiam apud Deum dives inveniretur.

20. Quid autem locupletius, quam quod ad imaginem Dei est ac similitudinem? Ad imaginem autem interior est homo, non iste exterior: ille qui sensu aestimatur, non oculis comprehenditur. Ille ergo nobis spectandus est, qui serius investigatur. Ideo Deus non putavit hominis fabricam esse laudandam; quia maior eius in virtute est portio. Praeclara quidem species, et praestantior caeteris animantibus: sed irrationabilia corporis specie aestimentur; ea autem quae rationis plena sunt, communem laudem sequestrent.

21. Homo igitur mihi non tam vultu quam affectu admirandus emineat atque excellat; ut in his laudetur, in quibus etiam Deus prophetico iudicio laudatur, de quo scriptum est: «Terribilis in consiliis super filios hominum» (Psal. LXV, 5): cuius opera coram Deo luceant, qui bona iugibus operibus facta contexat; et ideo laudatio eius non in exordio, sed in fine est: nemo enim nisi legitime certaverit, coronatur. Ideoque Sapiens tibi dicit: «Ante mortem non laudes hominem quemquam» (Eccles. XI, 28). Qua ratione hoc dixerit, superioribus docuit dicens: «Quia in fine hominis nudantur opera eius» (Ibid., 29).

   

22. Spectemus tertium, in quo manifestavit Deus sententiam suam; cum enim fecisset hominem et posuisset in paradiso operari et custodire, dixit non esse bonum solum esse hominem. «Faciamus, inquit, ei adiutorium secundum se» (Gen. II, 18). Sine muliere igitur homo non habet laudem, in muliere praedicatur. Nam cum dicit non esse bonum solum esse hominem, confirmat utique bonum esse hominum genus, si virili sexui femineus sexus accedat.

 23. Simul illud considerandum, quia ille de terra factus et limo est, ista de viro. Et caro quidem limus; sed ille adhuc informis, iste formatus.

   

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

24. Iam illud praeclarum Apostolicum arcessamus exemplum, quod habemus scriptum: «Quia relinquet homo patrem et matrem, et adhaerebit uxori suae, et erunt duo in carne una. Sacramentum hoc magnum est: ego autem dico in Christo et in Ecclesia» (Ephes. V, 31, 32). Advertimus itaque per mulierem coeleste illud impletum esse mysterium Ecclesiae, in ea gratiam figuratam, propter quam Christus descendit, et aeternum illud opus humanae redemptionis absolvit. Unde et Adam vocavit nomen mulieris suae vitam (Gen. II, 23); nam et in populis per mulierem successionis humanae series et propago diffunditur, et per Ecclesiam vita confertur aeterna.

16. A boa virgindade é aquela que não só absolveu do pecado o sexo masculino e o feminino, mas também os chamou à graça. Ora nós acusamos muitas vezes o sexo feminino de nos ter trazido a origem do pecado[6] e não consideramos quanto mais justamente essa acusação pode virar-se contra nós. Ora retrocedamos à origem e interroguemos o começo das coisas, para investigarmos quanta grandeza foi concedida ao sexo feminino e como, dentro da mísera fragilidade da condição humana, a mulher encontrou graça[7].

 

17. Quando Deus enalteceu toda a sua obra: o céu, a terra, os mares, a noite e o dia; o facto de o dia servir para o trabalho e a noite para o descanso; tendo enaltecido também os animais selvagens, ao chegar ao homem, parece que não o enalteceu sozinho, apesar de, por causa dele, terem sido criadas todas as coisas (Gen. 2, 10 e ss). E qual foi a razão disso, senão talvez porque as outras coisas estão à vista, ao passo que o homem está escondido? Nos animais não tens mais nada, para além daquilo que se vê, ao passo que no homem nada é mais insignificante do que aquilo que se vê. No homem, que consta de alma e corpo, aquilo que se vê é aquilo que o faz escravo, aquilo que não se vê é aquilo que manda nele.

 

18. Com razão, portanto, as outras criaturas são enaltecidas no princípio, ao passo que o louvor do homem não é feito logo, mas guardado para mais tarde. É que a beleza das outras coisas está por fora, ao passo que a beleza do homem está por dentro. A beleza das outras coisas está na sua natureza, a do homem está no coração. Que é que pode ser tão alto e tão profundo, como a alma do homem que, como um invólucro do corpo, se esconde e oculta, para que ninguém consiga facilemte olhá-la e examiná-la por dentro? Por isso é que o homem não é enaltecido antes. É que ele precisava de ser avaliado antes, não na pele exterior, mas no homem interior, e só depois é que havia de ser enaltecido. O Apóstolo Pedro definiu muito bem o homem ao dizer que «o homem de coração está oculto na incorrupção de uma alma mansa e serena e que é rica aos olhos de Deus» (1Ped. 3, 4).

 

19. Com razão, portanto, se adia o enaltecimento do homem, para que depois se faça um louvor acrescido de juros, sendo que esse adiamento não provoca prejuízo, mas sim lucro. Por conseguinte que ninguém se despreze como se não tivesse valor, nem se avalie pelo aspecto do seu corpo. De facto, embora o santo Job tivesse dito: «Saí nu do ventre de minha mãe e nu para ele voltarei» (Job 1, 21), todavia teve oportunidade de se achar rico, não só aos olhos dos homens, mas também aos olhos de Deus.

 20. Mas que coisa pode ser mais rica, do que ser à imagem e semelhança de Deus? Ora o homem interior é que é à imagem de Deus, e não o exterior; é aquele que é avaliado pela inteligência, não aquele que é captado pelos olhos. Portanto devemos olhar para aquele que é analisado mais tarde. Deus julgou que a criação do homem não devia ser enaltecida, porque a parte melhor dele está na virtude. Na verdade a sua aparência é notável e mais excelente que a dos outros animais, mas os animais irracionais são avaliados pela aparência corporal, ao passo que os seres dotados de razão subtraem-se ao louvor comum.

 21. Quanto a mim, o homem sobressai e destaca-se como digno de admiração, não tanto pelo rosto, quanto pelo afecto, para poder ser enaltecido por aquilo que, na opinião do Profeta, enaltece o próprio Deus, acerca do qual está escrito: «Terrível nos seus desígnios para com os filhos dos homens» (Sl. 65, 5). Que as obras do homem resplandeçam diante de Deus, que vai urdindo as boas acções com obras inesgotáveis. Por isso é que o louvor do homem não está no princípio, mas no fim. Com efeito ninguém é coroado, se não lutou correctamente. Por isso te diz a Sabedoria: «Não louves nenhum homem antes da morte» (Eclo. 11, 28). E a seguir ensinou porque disse isto, afirmando: «Porque no fim do homem descobrem-se as suas obras» (Eclo. 11, 29).

 22. Voltemo-nos agora para um terceiro aspecto, em que Deus ditou a sua sentença. Tendo Deus feito o homem e tendo-o colocado no paraíso para o trabalhar e guardar, disse que não é bom que o homem esteja só. E acrescenta: «Façamos-lhe um auxiliar semelhante a ele» (Gen. 2, 18). Portanto sem mulher o homem não é enaltecido, é na mulher que ele é exaltado. Com efeito, quando diz que não é bom que o homem esteja só, realmente confirma que o género humano só é bom, se o sexo feminino se juntar ao sexo masculino[8].

 

23. Ao mesmo tempo é preciso considerar o facto de o homem ter sido feito de terra e de barro, e a mulher do homem. Na verdade a carne dela também é barro, mas barro dele ainda é informe, ao passo que o barro dela já é moldado.

 24. Vejamos agora aquela bela interpretação do Apóstolo que encontramos escrita: «Por isso, o homem deixará o pai e a mãe, unir-se-á à sua esposa e serão os dois uma só carne. Grande é este mistério; mas eu interpreto-o em relação a Cristo e à Igreja» (Ef. 5, 31-32). Percebemos assim que por meio da mulher foi levado à plenitude aquele celeste mistério da Igreja, porque nela foi prefigurada a graça, por causa da qual Cristo veio ao mundo e realizou aquela eterna obra da redenção humana. Por isso também Adão deu à sua mulher o nome de vida (Gen. 2, 23), porque entre os povos é pela mulher que se difunde a expansão e propagação da descendência humana e é pela Igreja que se concede a vida eterna.

 

Capítulo 4

A mulher é apresentada como modelo de conversão que o homem deve seguir.

 

25. Sane negare non possumus quod erraverit mulier. Quid miraris tamen si erraverit et infirmior lapsus est sexus, cum sit lapsus etiam fortior? Mulier excusationem habet in peccato, vir non habet. Illa ut Scriptura asserit, a sapientissimo omnium serpente decepta est, tu a muliere: id est, illam superior creatura decepit, te inferior; te enim mulier decepit, illam malus licet, tamen angelus. Si tu inferiori non potuisti resistere, quomodo illa potuit superiori? Culpa tua illam absolvit.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

26. Si de merito culpae dubitas, interrogemus sententiam. Illi dictum est: «In tristitia paries filios, et ad virum conversio tua, et ipse tibi dominabitur» (Ibid., 16). Viro autem dicitur: «Terra es, et in terram íbis» (Ibid., 19). Et vere iusta sententia; quandoquidem si Adam quod a Domino Deo audierat, servare non potuit, quomodo potuit servare mulier quod audivit a viro? Si illum Dei vox non confirmavit, quomodo istam vox confirmaret humana?

 

27. Denique Adam conventus, quod contra divina quae coram audierat praecepta, gustasset, nihil habuit quod diceret, nisi quod sibi mulier dedisset, et manducasset: mulier autem ait; «Serpens traduxit me, et manducavi» (Ibid. 13). Quanto maior mulieris absolutio! Ille arguitur, haec interrogatur. Adde illud, quod et prior culpam fatetur; etenim quae se dicit esse seductam, testatur errorem. Erroris igitur medicina confessio est.

 

28. In iudicio ipso quanto clementior mulier viro! Ille mulierem suam accusavit; ista serpentem, hoc est, nec accusata crimen retorsit: sed ipsum accusatorem suum maluit, si posset, absolvere quam ligare.

 

 

29. Habes igitur et culpae absolutionem in confessione, et sententiae in exsecutione. In tristitia, inquit, paries filios. Condemnationis suae pondus agnoscit, munus poenalis conditionis exsequitur. Pro te mulier doloribus suis militat, et remunerationem ex poena invenit; ut per filios per quos affligitur, liberetur. Facta est itaque gratia ex iniuria, salus ex infirmitate; scriptum est enim: «Quia salva erit per filiorum generationem» (ITim. II, 15). Cum salute itaque parit, quos in tristitia parturivit: et ad laudem educat, quos peperit cum dolore.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

30. Sed dicis, o vir, quia mulier tentatio fuerit viri. Verum est. Iam si est decora, ecce alia tentatio. Tamen Abrahae descendenti in Aegyptum uxoris pulchritudo non nocuit, immo magis profuit; honoratus est enim per uxorem, non ludibrio habitus in uxore (Gen. XII, 16, 20). Cur autem tu vultus decorem in coniuge magis quam morum requiris? Placeat uxor honestate magis quam pulchritudine. Illa eligatur quae Saram moribus referat. Non est vitium mulieris esse quod nascitur: sed vitium viri est quaerere in uxore quo saepe tentatur; in quo si infirmior fuerit, mulier ipsa labatur: si fortior, vir periclitetur. Non possumus reprehendere divini artificis opus; sed quem delectat corporis pulchritudo, multo magis illa delectet venustas, quae ad imaginem Dei est intus, non foris comptior.

 

 

 

 

 

31. Si ergo uxor tentatio est, esto cautior, quaere remedium adversus tentationis periculum: «Vigilate, inquit, et orate, ne intretis tentationem» (Matth. XVI, 13). Dominus hoc dixit, vir audivit, mulier implevit. Quotidie mulieres ieiunant, et non indicta praestant ieiunia: peccatum agnoscunt, accersunt remedium. Semel de interdicto mulier manducavit, et quotidie ieiunio solvit. Qui secutus es errantem, sequere corrigentem. Ambo manducastis, cur sola ieiunat; hoc est, ambo deliquistis, cur sola remedium quaerit errori?

25. Não podemos negar que a mulher sem dúvida errou. Mas porque é que tu te admiras de o sexo mais fraco ter errado e caído, quando o mais forte também caiu? A mulher tem desculpa no pecado, o homem não tem. Ela, como a Escritura afirma, foi enganada pela serpente, o mais sábio de todos os animais, ao passo que tu foste engando pela mulher. Ou seja, uma criatura superior enganou-a a ela, e tu foste enganado por uma inferior. Com efeito a mulher enganou-te a ti, ao passo que ela foi enganada por um anjo, embora mau. Se tu não pudeste resistir ao inferior, como é que ela poderia resistir ao superior? O teu pecado absolveu-a.

 

26. Se duvidas da gravidade do pecado, interroguemos a sentença. A ela foi-lhe dito: «Entre dores darás à luz os filhos, e procurarás o teu marido, mas ele te dominará» (Gen. 3, 16). Porém ao homem é dito: «És terra e à terra hás-de voltar» (Gen. 3, 19). Na verdade a sentença é justa, na medida em que, se Adão não foi capaz de cumprir o que Deus lhe tinha dito, como podia a mulher cumprir o que ouviu ao marido? Se a voz de Deus não lhe deu força a ele, como é que a voz humana lhe iria dar força a ela?

 

27. Afinal Adão, sendo-lhe perguntado porque tinha comido o fruto contra os preceitos divinos, que ele ouvira pessoalmente, não teve mais que dizer, senão que a mulher lho tinha dado e ele tinha comigo. A mulher porém disse: «A serpente enganou-me e eu comi» (Gen. 3, 13). Quanto maior não é justificação da mulher! Acrescenta-lhe ainda o facto de ter sido ela a primeira a confessar a culpa. Com efeito ela diz que foi enganada e assume o erro. Ora a confissão é o remédio do pecado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

28. No próprio julgamento, quanto mais clemente não foi a mulher em comparação com o homem! Ele acusou a sua mulher, ao passo que ela acusou a serpente. Ou seja, ela nem depois de acusada devolveu a acusação, mas, se pudesse, preferia absolver o seu próprio acusador, em vez de tramá-lo.

 

29. Tens, portanto, não só a absolvição do pecado na confissão, mas também a absolvição da sentença na execução[9]. É-lhe dito: «Entre dores darás à luz os filhos». Ela reconhece o peso da sua condenação e sai dali com a carga da sua condição penal. É por ti que a mulher carrega com suas dores e encontra no castigo a sua recompensa, para ser libertada por meio dos filhos que a fazem sofrer. Desta maneira, a graça veio da ofensa, a salvação veio da enfermidade, pois está escrito: «Ela será salva ao dar à luz os filhos» (1Tim. 2, 15). Assim, juntamente com a salvação, ela pare os filhos que gerou na tristeza, e traz para a luz aqueles que pariu na dor.

 

30. Mas tu, ó homem, dizes que a mulher foi a tentação do homem. É verdade. Agora, se ela é formosa, aí está outra tentação. Todavia ao Abraão, que descia para o Egipto, não o prejudicou a beleza da esposa, antes o beneficou ainda mais. Com efeito ele foi honrado por causa da mulher e não teve na mulher motivo de escárnio (Gen. 12, 16-20). Porque é que então tu procuras na tua esposa a beleza do rosto, mais que a beleza dos costumes? Que uma esposa possa agradar mais pela honestidade, que pela formosura. Que seja escolhida aquela que imite Sara nos costumes. Não é defeito da mulher ser o que é por nascimento, mas é defeito do homem procurar na mulher aquilo com que pode ser tentado. Com isto a mulher sucumbe, se for mais fraca, mas se for mais forte, é o homem que corre perigo. Não podemos censurar a obra do divino artífice, mas aquele que se deleita com a beleza do corpo, muito mais se deve deleitar com aquela formosura que, sendo à imagem de Deus, é mais encantadora interiormente e não exteriormente.

 

31. Por conseguinte, se a mulher é uma tentação, sê mais cauteloso, procura o remédio contra o perigo da tentação. É-te dito: «Vigiai e orai, para que não entreis em tentação» (Mt. 16, 13). O Senhor disse isto; o homem ouviu e a mulher cumpriu. Todos os dias as mulheres jejuam e não praticam jejuns impostos. Reconhecem o seu pecado e procuram o remédio. A mulher comeu uma vez o fruto proibido, e todos os dias o repara com o jejum. Tu que foste atrás da que errou, procura seguir também a que se corrige. Ambos comestes, porque é que só ela jejua? Ou seja, ambos transgredistes, porque é que só ela procura o remédio para o erro?

 

Capítulo 5

Elogio da Virgem Maria como modelo de virgindade. As objecções de Bonoso e sua refutação.

 

32. Veni, Eva, iam sobria; veni, Eva, etsi in te aliquando intemperans, sed iam in prole ieiuna. Veni, Eva, iam talis, ut non de paradiso excludaris, sed rapiaris ad coelum. Veni, Eva, iam Sara, quae parias filios non in tristitia, sed in exsultatione: non in moerore, sed risu. Isaac tibi multiplex nascetur. Veni iterum, Eva, iam Sara, de qua dicatur viro: Audi Sarai uxorem tuam (Gen. XXI, 12). Sis tu licet viro subdita, quia esse te decet; cito tamen solvisti sententiam, ut vir te audire iubeatur.

 

 

 

 

33. Si typum Christi illa pariendo a viro meretur audiri, quantum proficit sexus qui Christum, salva tamen virginitate, generavit! Veni ergo, Eva, iam Maria, quae nobis non solum virginitatis incentivum attulit, sed etiam Deum intulit. Unde laetus et exsultans tanto munere dicit Esaias: «Ecce virgo in utero accipiet, et pariet filium, et vocabitur nomen eius Emmanuel» (Esai. VII, 14), «quod est interpretatum, nobiscum Deus» (Matth. I, 23). Unde hoc munus? Non de terra utique, sed de coelo vas sibi hoc per quod descenderet Christus elegit, et sacravit templum pudoris. Per unam descendit, sed multas vocavit. Unde et speciale Maria Domini hoc nomen invenit, quod significat: Deus ex genere meo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

34. Dictae sunt et ante Mariae multae: nam et Maria soror Aaron dicta fuit (Exod. XV, 20); sed illa Maria amaritudo maris vocabatur. Venit ergo Dominus in amaritudinem fragilitatis humanae, ut conditionis amaritudo dulcesceret, Verbi coelestis suavitate et gratia temperata. Hoc significavit fons Merrha per lignum dulcoratus (Exod. XV, 23, 25); eo quod populus nationum amarus ante peccatis, vel caro nostra temperamento passionis Dominicae in usus alteros mutaretur.

 

 

 

 

35. Egregia igitur Maria, quae signum sacrae virginitatis extulit, et intemeratae integritatis pium Christo vexillum erexit. Et tamen cum omnes ad cultum virginitatis sanctae Mariae advocentur exemplo, fuerunt qui eam negarent virginem perseverasse. Hoc tantum sacrilegium silere iamdudum maluimus: sed quia causa vocavit in medium, ita ut eius prolapsionis etiam Episcopus argueretur, indemnatum non putamus relinquendum; et maxime quia et mulierem eam legimus, sicut qui in Cana Galilaeae ipse Dominus ait dicenti sibi: «Vinum non habent, fili, respondit: Quid mihi et tibi est, mulier» (Ioan. II, 3, 5)? Et alibi legimus quod dixerit Matthaeus de Ioseph et Maria: «Inventa est antequam convenirent, in utero habens de Spiritu sancto» (Matth. I, 18). Et infra: «Non cognovit eam, donec peperit» (Ibid., 19). Et iterum de Ioseph: «Noluit eam traducere» (Matth. XII, 47). Et fratres Domini videntur significare, quod de Maria suscepti sint. Et Apostolus ait: «Postquam venit plenitudo temporis, misit Deus Filium suum factum ex muliere, factum sub lege» (Gal. IV, 4). Quae singula enodanda nobis sunt ut qui illa legit, sermonis huiusmodi vinculo non alligetur. Respondeamus itaque suo ordine.

 

 

36. De mulieris nomine quid moveamur? Ad sexum retulit; non enim corruptelae, sed sexus vocabulum est. Vulgi usus non praeiudicat veritati. Denique virginitas primum hoc nomen accepit; nam cum sumpsisset Deus unam de costis Adae, et supplevisset carnem in locum ipsius: «Aedificavit, inquit, eam in mulierem» (Gen. II, 22). Utique adhuc virum non cognoverat, et iam mulier vocabatur. Rationem quoque nominis huius Scriptura non tacuit dicens: «Quia dixit Adam: Os de ossibus meis, et caro de carne mea. Haec vocabitur mulier, quoniam de viro suo sumpta est» (Ibid., 23). Quia sumpta est, inquit, de viro suo, non quia virum experta. Itaque quamdiu in paradiso fuit, mulier vocata est, et cognita viro non erat: ubi autem eiecta est de paradiso, tunc legitur quia Adam cognovit Evam mulierem suam, et tunc concepit et peperit filium (Gen. IV, 1). Primus igitur solutus est nodus.

 

37. Secunda quaestio, quia scriptum est, «Antequam convenirent, inventa est in utero habens» (Matth. I, 18). Consuetudo autem divinae Scripturae ea est, ut causam quae suscepta est, astruat, incidentem differat.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

38. Quo solvitur etiam tertia quaestio, qua dictum est: «Non cognovit eam, donec peperit Filium» (Ibid., 19). Quid ergo? Postea cognovit? Minime. Denique habes scriptum: «Ego sum Deus, et donec senescatis, ego sum» (Esai. XLVI, 4). Numquid igitur postquam senuerunt, quibus donec dictum erat, Deus esse desivit? Item in prophetia David legimus: «Dixit Dominus Domino meo: Sede a dextris meis, donec ponam inimicos tuos scabellum pedum tuorum» (Psal. CIX, 1). Numquid subiectis populis nationum, qui ante videbantur inimici, cum salutis auctorem negarent, simulacris servirent, ad dexteram Patris Filius sedere desivit, aut in perpetuum non sedebit?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

39. Quid autem praeiudicat Mariae, si coelestis consilii mysterium Ioseph non intellexit, et putavit virginem non esse, quam praegnantem videret? Resurrectionem eius angeli ignoraverunt, quod significant versiculi: «Tollite portas, principes, vestras, et elevamini portae aeternales, et introibit Rex gloriae. Quis est iste Rex gloriae?» (Psal. XXIII, 7, 8). Interrogant quasi ignorent; et alii respondent: «Dominus fortis et potens, Dominus potens in praelio, ipse est Rex gloriae». Et repetivit Propheta eosdem versiculos, et nihilominus illi quasi ignorantes iterum interrogaverunt; sic enim scriptum est: «Tollite portas, principes, vestras, et elevamini portae aeternales, et introibit Rex gloriae. Quis est iste Rex gloriae?» (Ibid.  9, 10). Quomodo ergo homo potuit divinum scire secretum, quod angeli nesciebant? Et in Esaiae libro habes: «Quis est iste, qui advenit ex Edom; rubor vestimentorum eius ex Bosor?» (Esai. LXIII, 1). Et utique minus erat hominem resurrexisse, quam virginem parturisse. Etenim iam Eliae precibus, Elisaei orationibus mortui resurrexerant (III Reg. XVII, 22): numquam autem ante, numquam postea virgo generavit (IV Reg. IV, 17).

 

40. Hoc autem opinatus est quod traduceret eam quasi ream, antequam ab angelo moneretur (Matth. I, 20): postea autem quasi fidelis nec dubius virginitatis eius servavit oraculum.

32. Vem agora sóbria, ó Eva. Vem, ó Eva, pois embora outrora em ti houvesse intemperança, todavia agora estás de jejum na pessoa dos teus descendentes. Vem agora assim, ó Eva, não para seres excluída do paraíso, mas para seres arrebatada ao céu. Vem agora, ó Eva, na pessoa de Sara, para dares à luz os filhos não na dor, mas na alegria; não na tristeza, mas no riso. Nascerão de ti muitos Isaaques. Vem de novo, ó Eva, na pessoa de Sara, para que também acerca de ti possa dizer-se ao homem: «Dá ouvidos a Sara, tua esposa» (Gen. 21, 12). Embora tu sejas submissa ao homem, porque isso te convém, todavia tu cumpriste rapidamente a tua pena, a ponto de se mandar ao homem que te dê ouvidos

 

33. Se aquela outra mulher, ao dar à luz a figura de Cristo, merece ser ouvida pelo homem, quanto é que não há-de ser dignificado o sexo que gerou Cristo, depois de salva a virgindade! Então vem, ó Eva, na pessoa de Maria, que não só nos trouxe o incentivo à virgindade, como também nos trouxe o próprio Deus. Por isso é que Isaías, exultando de alegria com tão grande dom, diz: «Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho, chamado Emanuel» (Is. 7, 14), «que quer dizer Deus connosco» (Mt. 1, 23). Donde procede este dom? De certeza que não é da terra, mas foi desde o céu que Cristo escolheu para si o vaso pelo qual havia de vir ao mundo, e consagrou-o como templo da pureza. Veio só por uma, mas chamou muitas. Por isso Maria, Mãe do Senhor, recebeu este nome especial, que significa ‘Deus vem da minha descendência’[10].

 

 

34. Muitas anteriormente também foram chamadas Marias. A irmã de Aarão, também se chamou Maria (Ex. 15, 20-23). Mas essa Maria significava ‘amargura do mar’. Poranto o Senhor veio na amargura da fragilidade humana, para adoçar a amargura da nossa condição, temperada com a suavidade e a graça do Verbo celeste. Este foi o significado da fonte de Mara, cuja água foi adoçada por meio de um madeiro (Ex. 15, 23-25). É que o povo das nações, que antes era amargo por causa dos seus pecados (e o mesmo se pode dizer da nossa carne), havia de mudar-se para outras utilidades com o tempero da paixão do Senhor.

 

35. Maria é portanto eminente, ela que enalteceu o sinal da virgindade consagrada e levantou para Cristo o piedoso estandarte da incorruptível pureza. E todavia, tendo sido todos chamados ao cultivo da virgindade, a exemplo de Santa Maria, houve quem negasse que ela tivesse permanecido virgem. Desde há muito, temos preferido não falar sobre este tão grande sacrilégio. Mas porque a questão foi submetida a juízo público, a ponto de até um bispo ser acusado de defender a queda de Maria, pensamos que isto não devia ficar sem julgamento[11]. E, sobretudo, porque também nós lemos que Maria é mulher, tal como o próprio Senhor em Caná da Galileia lhe chamava a ela que dizia: «Não têm vinho, filho». E ele respondeu: «Que tem isso a ver comigo e contigo, mulher?» (Jo. 2, 3-5). E noutro lugar lemos o que Mateus disse de José e de Maria: «Antes de terem vido em comum, achara-se grávida por virtude do Espírito Santo» (Mt. 1, 18). E mais abaixo: «Não a conheceu, até que deu à luz» (Mt. 1, 19). E os irmãos do Senhor parecem querer dizer que Maria teve outros filhos. E o Apóstolo diz: «Depois de chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, sujeito à lei» (Gal. 4, 4). Cada uma destas objecções precisam de ser esclarecidas por nós, para que quem as lê não se deixe enredar nos laços destas palavras. Respondamos pois segundo a ordem de cada uma.

 

36. Porque é que ficamos perturbados com o nome de mulher? Ele refere-se ao sexo. Com efeito essa palavra não é depreciativa, mas significa o sexo (feminino). O uso vulgar não deturpa a verdade. Afinal este foi o primeiro nome da virgindade, pois quando Deus tomou uma das costelas de Adão e colocou carne no seu lugar, diz a Escritura: «formou a mulher» (Gen. 2, 22). Realmente ela ainda não tinha conhecido homem e já era chamada de mulher. Ora a Escritura não ocultou a razão deste nome, ao dizer: «Adão exclamou: esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem» (Gen. 2, 23). Disse que foi tirada do homem, não que experimentou homem. Assim, enquanto esteve no paraíso, foi chamada mulher, sem que tivesse conhecido homem. Porém, quando foi expulsa do paraíso, então lê-se que Adão conheceu Eva sua mulher, que ela concebeu e que deu à luz um filho (Gen. 4, 1). Está desatado o primeiro nó.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

37. A segunda questão diz que está escrito: «Antes de terem vido em comum, encontrou-se grávida» (Mt. 1, 18). O costume da Escritura divina é atacar directamente a questão que se propôs tratar e não se deter numa questão episódica[12].

 

38. Com isto resolve-se também a terceira questão, na qual foi dito: «Não a conheceu, até que deu à luz o seu Filho» (Mt. 1, 19). Que é que isto quer dizer? Conheceu-a depois? De maneira nenhuma. Afinal também tens escrito assim: «Eu sou Deus e, até que vós envelheçais, Eu sou o mesmo» (Is. 46, 4). Será que depois de envelhecerem aqueles a quem foi dito «até que», Deus deixou de ser o mesmo? Também na profecia de David lemos: «Disse o Senhor ao meu Senhor: senta-te à minha direita, até que eu coloque os teus inimigos como escabelo de teus pés» (Sl. 109, 1). Acaso, depois de submetidos os povos pagãos, que antes pareciam inimigos, ao negarem o autor da salvação e ao adorarem os ídolos, o Filho deixou de estar sentado à direita do Pai? Será que não vai estar sentado para sempre?

 

39. E o que é que prejudica Maria, se José não entendeu o mistério do plano celeste e julgou que ela não era virgem, vendo-a grávida? Os anjos desconheciam a ressurreição, coisa que estes versículos mostram: «Levantai as vossas portas, ó príncipes, alteai-vos, pórticos eternos, e entrará o Rei da glória. Quem é esse Rei da glória?» (Sl 23, 7). Perguntam como se não soubessem. E outros respondem: «O Senhor forte e poderoso, o Senhor poderoso nas batalhas, é Ele o Rei da glória». O Profeta repetiu os mesmos versículos e eles, como se não soubessem, de novo voltaram a perguntar. Com efeito assim está escrito: «Levantai as vossas portas, ó príncipes, alteai-vos, pórticos eternos, e entrará o Rei da glória. Quem é esse Rei da glória?» (Sl. 23, 9-10). Por conseguinte, como é que podia um homem conhecer os segredos divinos, quando os anjos os desconheciam? Também podes encontrar no livro de Isaías: «Quem é este que vem de Edom, de Bosra, com as vestes tingidas de vermelho?» (Is. 63, 1). E na realidade era coisa de menos monta a ressurreição de um homem, do que uma virgem dar à luz. Com efeito, com as preces de Elias e com as orações de Eliseu, alguns mortos já tinham ressuscitado (III Re. 17, 22). Porém nunca antes e nunca depois uma virgem conseguiu gerar (IV Re. 4, 17).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

40. Ora José conjecturou isto, a ponto de a fazer passar por ré, antes de ser avisado pelo anjo (Mt. 1, 20). Depois, fortalecido pela fé, e não duvidando da virgindade dela, cumpriu o oráculo.

 

Capítulo 6

Continuação da refutação das objecções contra a virgindade perpétua de Maria. Negar a virgindade de Nossa Senhora é um absurdo.

 

41. Nec illud moveat,quod ait: «Quia Ioseph accepit coniugem suam, et profectus est in Aegyptum» (Matth. I, 24); desponsata enim viro coniugis nomen accepit. Cum enim initiatur coniugium (27, q. 2, Cum initiatur, 1 et 2), tunc coniugii nomen adsciscitur; non enim defloratio virginitatis facit coniugium, sed pactio coniugalis. Denique cum iungitur puella, coniugium est, non cum virili admixtione cognoscitur.

 

42. Quod autem fuit desponsata connubio, licet alibi plenius dixerimus, libare nunc satis est causam coelestis mysterii; ut ab his qui Mariam gravi utero cernerent, non adulterium virginitatis, sed desponsatae partus legitimus crederetur. Maluit enim Dominus aliquos de sua generatione, quam de matris pudore dubitare.

 

 

 

 

 

43. Fratres autem gentis, et generis, populi quoque consortium nuncupari docet Dominus ipse, qui dicit: «Narrabo nomen tuum fratribus meis: in medio Ecclesiae laudabo te» (Psal. XXI, 23). Paulus quoque ait: «Optabam ego anathema esse pro fratribus meis» (Rom. IX, 3). Potuerunt autem fratres esse ex Ioseph, non ex Maria. Quod quidem si quis diligentius prosequatur, inveniet. Nos ea prosequenda non putavimus, quoniam fraternum nomen liquet pluribus esse commune.

 

 

 

 

 

 

 

44. An vero Dominus Iesus eam sibi matrem eligeret, quae virili semine aulam posset incestare coelestem, quasi eam cui impossibile esset virginalis pudoris servare custodiam? Cuius exemplo caeterae ad integritatis studium provocantur, ipsa ab huiusmodi quod per se caeteris propositum foret, munere deviaret?

 

45. Et quae esset, cui maius quam matri Dominus meritum reponeret, praemium reservaret? Nulli enim uberiora quam virginitati deputavit munera, sicut Scriptura nos docet. Sic enim per Esaiam Dominus locutus est: «Ne dicat spado, quia ego sum lignum aridum. Haec dicit Dominus spadonibus: Quicumque custodierint praecepta mea, et elegerint quae ego volo, et amplectentur testamentum meum, dabo illis in domo mea et in muro meo locum nominatum meliorem, et filiorum et filiarum nomen aeternum dabo illis, et non deficiente» (Esai. LVI, 3 et seq.). Aliis promittit ut non deficiant: matrem suam deficere patiebatur? Sed non deficit Maria, non deficit virginitatis magistra; nec fieri poterat ut quae Deum portaverat, portandum hominem arbitraretur: nec Ioseph vir iustus in hanc prorupisset amentiam, ut matri Domini corporeo concubitu misceretur.

42. Também não deve perturbar aquela passagem que diz: «José recebeu a sua esposa e partiu para o Egipto» (Mt. 1, 24). Com efeito, uma vez desposada com um homem, recebeu o nome de esposa. Quando se iniciam os esponsais, aplica-se o nome de conjuge[13]. Os esponsais não provocam o rompimento da virgindade, mas o pacto conjugal. Afinal quando uma donzela se casa, isso é o casamento, não quer dizer que seja conhecida por meio da união conjugal.

 

42. Ora, uma vez que foi desposada pelo casamento, embora noutro lugar o tenhamos dito de maneira mais completa[14], basta por agora consagrar a causa do mistério celeste, para que os que viam Maria grávida acreditassem que não se tratava de um adultério da virgindade, mas de um filho legítimo de uma mulher desposada. Na verdade o Senhor preferiu que alguns duvidassem da maneira como ele foi gerado, em vez de duvidarem da honra da sua mãe.

 

43. O próprio Senhor ensina que se chama irmãos à participação da mesma estirpe, da mesma raça e também do mesmo povo, quando diz: «Anunciarei o teu nome aos meus irmãos: louvar-te-ei no meio da assembleia» (Sl. 21, 23). Paulo também diz: «Desejaria eu próprio ser anátema, pelo bem dos meus irmãos» (Rom. 9, 3). Também podiam os irmãos ser filhos de José, não de Maria. Na verdade, se alguém investigar isso com mais atenção, poderá chegar lá[15]. Eu penso que não devo ir por aí, porque é evidente que este nome “irmãos” é um nome comum referente a muitos.

 

44. Acaso o Senhor Jesus iria escolher para si uma mãe que pudesse manchar o templo celeste com o sémen masculino, como se fosse alguém a quem fosse impossível guardar o pudor virginal? Se com o exemplo dela as outras virgens são estimuladas ao cultivo da pureza, iria ela própria desviar-se dessa virtude que havia de ser proposta às outras?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

45. E a quem poderia o Senhor atribuir um mérito maior, a quem poderia reservar um prémio maior do que à sua própria mãe? Com efeito, os méritos mais excelentes o Senhor não os atribuiu a nenhuma outra condição, senão à virgindade, tal como a Escritura nos ensina. Pois assim falou o Senhor por meio de Isaías: «Não diga o eunuco: eu sou um lenho seco. O Senhor diz isto aos eunucos: os que guardarem os meus preceitos, escolherem o que eu quero, e se afeiçoarem à minha aliança, dar-lhes-ei na minha casa e dentro das minhas muralhas o lugar mais valioso designado para os filhos e as filhas, e dar-lhes-ei um nome eterno que não fracassará» (Is. 56, 3-5). Se aos outros Ele promete que não hão-de fracassar, iria admitir que a sua mãe fracassasse? Mas Maria não fracassou, não fracassou a mestra da virgindade. Não podia acontecer que aquela que tinha trazido Deus dentro si, lhe passasse pela cabeça trazer dentro si um homem. Nem José, varão justo, cairia nessa loucura de querer misturar-se com a mãe do Senhor em relação carnal".

 

 

 

 

Capítulo 7

O argumento da entrega de Maria a João. A virgindade de Maria refulge no mistério da Paixão e na exultação de João Baptista.

 

46. Sed tamen Maria suis, non alienis moribus defendatur. Non defecit, ut dixi. Ipse testis est Filius Dei, qui cum esset in cruce, discipulum matri commendabat ut filium: discipulo eam tradebat ut matrem (Ioan. XIX, 26, 27). Docuit hoc Ioannes, qui mystica magis scripsit; alii enim Evangelistae scripserunt quod in passione Domini terra contremuit, sol refugit, persecutoribus venia postulata est: iste dilectus Domini, qui e pectore eius hauserat secreta sapientiae, et piae voluntatis arcana ab aliis dicta (Matth. XXVII, 51 et seq.) praeteriens, hoc diligentius prosecutus est, ut maternae virginitatis perseverantiam suo iudicio comprobaret (Ioan. XIII, 23); quasi filius de matris pudore sollicitus, ne quis eam tanto convicio temeratae integritatis aspergeret.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

47. Dignum quippe erat ut qui latroni veniam donabat, matrem dubio pudoris absolveret. Dicit enim ad matrem: «Mulier, ecce filius tuus. Dicit et ad discipulum: «Ecce mater tua» (Luc. XXIII, 43). Ipse est discipulus, cui mater commendatur. Quomodo marito uxorem tolleret, si fuerat Maria mixta coniugio, aut usum tori coniugalis agnoverat?

 

48. Claudite ora, impii: aperite aures, pii: audite quid Christus loquatur. Testatur de cruce Dominus Iesus (Ioan. XIX, 26), et paulisper publicam differt salutem, ne matrem inhonoram relinquat. Subscribitur Ioannes testamento Christi. Legatur matri pudoris defensio, testimonium integritatis: legatur et discipulo matris custodia, pietatis gratia. Et ex illo «suscepit eam discipulus in sua» (Ibid. 27). Non utique Christus faciebat divortium, non Maria relinquebat virum. Sed cum quo virgo habitare debebat, quam cum eo quem filii haeredem, integritatis sciret esse custodem?

 

49. Stabat ante crucem mater, et fugientibus viris, stabat intrepida. Videte utrum pudorem mutare potuerit mater Iesu, quae animum non mutavit. Spectabat piis oculis filii vulnera, per quem sciebat omnibus futuram redemptionem. Stabat non degeneri mater spectaculo, quae non metuebat peremptorem. Pendebat in cruce filius, mater se persecutoribus offerebat. Si hoc solum esset, ut ante filium prosterneretur, laudandus pietatis affectus, quod superstes filio esse nolebat: sin vero ut cum filio moreretur, cum eodem gestiebat resurgere, non ignara mysterii quod genuisset resurrecturum: simul quae publico usui impendi mortem filii noverat, praestolabatur si forte etiam sua morte publico muneri aliquid adderetur. Sed Christi passio adiutorio non eguit, sicut ipse Dominus longe ante praedixit: «Et respexi, et non erat auxiliator: et attendi, et nemo suscipiebat; et liberabo eos brachio meo» (Esai. LXIII, 5).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

50. Quomodo ergo extorqueri potuit integritas Mariae, quae fugientibus apostolis, supplicia non metuebat, sed ipsa se offerebat periculis? Cuius tanta gratia, ut non solum in se virginitatis gratiam reservaret, sed etiam his quos viseret, integritatis insigne conferret. Visitavit Ioannem Baptistam, et in utero matris priusquam nasceretur, exsilivit (Luc. I, 41). Ad vocem Mariae exsultavit infantulus, obsecutus antequam genitus. Nec immerito mansit integer corpore, quem tribus mensibus oleo quodam suae praesentiae et integritatis unguento Domini mater exercuit. Eademque postea Ioanni Evangelistae est tradita coniugium nescienti. Unde non miror prae caeteris locutum mysteria divina, cui praesto erat aula coelestium sacramentorum.

46. Todavia a defesa de Maria faz-se pelos seus próprios costumes e não pelos alheios. Ela não fracassou, como eu disse. Testemunha disso é o próprio Filho de Deus que, estando na cruz, entrega à mãe o discípulo como seu próprio filho (Jo. 19, 27). Ensinou isto o Evangelista João, que foi o que mais escreveu sobre temas místicos. Com efeito, os outros evangelistas escreveram que na paixão do Senhor a terra estremeceu, o sol escondeu-se, e que foi pedido o perdão para os perseguidores. Este Evangelista, predilecto do Senhor, que tinha bebido do seu peito os segredos da sabedoria e os mistérios da sagrada vontade, omitindo as coisas relatadas pelos outros (Mt. 27, 51 e ss), procurou com mais diligência comprovar com o seu testemunho a permanência da virgindade materna (Jo. 13, 23). Ele foi como um filho solícito pela honra da sua mãe, para que ninguém a manchasse com a tão grande ofensa da profanação da sua integridade.

 

47. Na realidade era justo que quem dava o perdão ao ladrão, libertasse a própria mãe da suspeita de falta de castidade. De facto Ele diz à mãe: «Mulher, eis o teu filho». E diz ao discípulo: «Eis a tua mãe» (Lc. 23, 43). Trata-se do próprio discípulo a quem a mãe é entregue. Como é que iria retirar a esposa ao marido, se Maria se tivesse unido a ele em união carnal, ou se tivesse experimentado o leito conjugal?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

48. Fechai a boca, ímpios. Abri os ouvidos, gente piedosa. Ouvi o que Cristo diz. O Senhor Jesus atesta-o do alto da cruz (Jo. 19, 26) e atrasa um pouco a salvação universal, para não deixar a sua mãe sem honra. João é contemplado no testamento de Cristo. À mãe é legada a defesa da castidade e o testemunho da integridade, ao discípulo é legada a custódia da mãe e a graça da piedade. «E o discípulo recebeu-a em sua casa» (Jo. 19, 27). Cristo não estava a fazer de maneira nenhuma um divórcio, pois Maria não deixava o marido[16]. Mas com quem é que a Virgem devia morar, senão com aquele que ela sabia que era, como herdeiro do filho, o guardião da sua integridade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

49. Junto à cruz estava a sua mãe e, enquanto os homens fugiam, ela permanecia ali intrépida[17]. Vede se a mãe de Jesus podia modificar a sua atitude de pudor, ela que não modificou a sua atitude de ânimo. Olhava com olhos piedosos as chagas do Filho, por meio de quem ela sabia que todos haviam de ser redimidos. Estava ali como mãe, não para assistir a um espectáculo violento, ela que não temia o assassino. O Filho pendia na cruz e a mãe oferecia-se aos perseguidores. Se fosse apenas para se prostrar diante do Filho, esse afecto de piedade seria digno de louvor, porque não queria ser uma espectadora passiva. Mas ela queria morrer com o filho, desejando ressuscitar com ele, pois ela não desconhecia o mistério de ter gerado aquele que havia de ressuscitar. Além disso ela bem sabia que a morte do Filho era aplicada para o bem de todos e tinha a esperança de que, talvez, com a sua própria morte alguma coisa fosse acrescentada à salvação universal[18]. Mas a paixão de Cristo não tinha necessidade de ajuda, tal como o próprio Senhor muito antes tinha predito: «Procurei, mas não havia ninguém para me auxiliar. Olhei e ninguém me ajudava. Eu os libertarei com o meu braço» (Is. 63, 5).

 

50. Como é que então podia ser extorquida a integridade de Maria, ela que, quando os apóstolos fugiam, não temia os suplícios, mas antes se oferecia aos perigos? Tão grande graça era a sua que não só conservava em si a graça da virgindade, mas também comunicava a marca da sua integridade àqueles a quem visitava. Visitou João Baptista e este exultou no ventre da sua mãe antes de nascer (Lc. 1, 41). O menino exultou ao ouvir a voz de Maria, mostrando-se obsequioso antes de ser dado à luz. Com razão permaneceu carnalmente íntegro aquele a quem a mãe do Senhor assistiu, durante três meses, com o óleo[19] da sua presença e com o perfume da sua integridade. Ela mesma foi depois entregue a João Evangelista que também não conhecera o casamento. Por isso não me admiro de Ele ter revelado a este, mais que aos outros, os mistérios divinos, pois este tinha mais à mão o tesouro dos mistérios celestes.

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 8

O testemunho do Profeta Ezequiel e a porta fechada que simboliza a virgindade de Maria.

 

51. Nunc mihi dicant qui hanc quaestionem serunt, quid est quod ait Dominus per prophetam: «Nunc revocabo captivitatem Iacob, et miserebor adhuc domus Israel» (Ezech. XXXIX, 25). Et infra, «Congregabo, inquit, de gentibus eos, et congregabo illos de regionibus nationum, et sanctificabor in his in conspectu gentium: et scient quod ego sum Dominus Deus ipsorum, dum apparebo illis inter nationes; et non avertam amplius faciem meam ab eis, pro eo quod effudi iram meam in domum Israel, dicit Dominus (Ibid., 27 et seq.).

 

52. Et infra dicit propheta vidisse se in monte alto nimis aedificationem civitatis (Ezech. XL, 2 et seq.), cuius portae plurimae significantur; una tamen clausa describitur, de qua sic ait: Et convertit me secundum viam portae sanctorum exterioris, quae respicit ad Orientem, et haec erat clausa. Et ait ad me Dominus: Porta haec clausa erit, et non aperietur, et nemo transibit per eam; quoniam Dominus Deus Israel transibit per eam. Eritque clausa, quoniam dux hic sedebit in ea, ut manducet panem in conspectu Domini. Secundum viam Aelam portae intrabit, et secundum viam eius exibit» (Ezech. XLIV, 1 et seq.). Quae est haec porta, nisi Maria; ideo clausa, quia virgo? Porta igitur Maria, per quam Christus intravit in hunc mundum, quando virginali fusus est partu, et genitalia virginitatis claustra non solvit. Mansit intemeratum septum pudoris, et inviolata integritatis duravere signacula; cum exiret ex virgine, cuius altitudinem mundus sustinere non posset.

 

53. «Haec, inquit, porta clausa erit, et non aperietur». Bona porta Maria, quae clausa erat, et non aperiebatur. Transivit per eam Christus, sed non aperuit.

 

54. Et ut doceamus quia portam habet omnis homo, per quam Christus ingreditur: «Tollite, inquit, portas, principes, vestras, et elevamini portae  aeternales, et introibit Rex gloriae» (Psal.  XXIII,  7). Quanto magis ergo porta erat in Maria, in qua sedit Christus, et exivit? Est enim et porta ventris. Unde ait Iob sanctus: «Intenebrescant, inquit, stellae noctis illius; quia non conclusit portas ventris matris meae» (Iob. III, 9, 10).

 

55. Est ergo et porta ventris, sed non clausa semper: verum una sola potuit manere clausa, per quam sine dispendio claustrorum genitalium virginis partus exivit. Ideo ait propheta (Ezech. XLIV, 2): «Porta haec clausa erit: non aperietur, et nemo transibit per eam», hoc est, nemo hominum; «quoniam Dominus, inquit, Deus Israel transibit per eam». Eritque clausa, id est, ante et post transitum Domini erit clausa: et non aperietur a quoquam, nec  aperta est; quoniam habuit semper ianuam suam Christum, qui dixit: Ego sum ianua (Ioan. X, 7), quam nemo ab ea potuit avellere.

 

56. Haec porta ad orientem aspiciebat; quoniam verum lumen effudit, quae generavit Orientem, peperitque Solem iustitiae. Audiant ergo imprudentes: Clausa, inquit, erit haec porta, quae solum recipit Deum Israel. Is igitur de quo dictum est ad Ecclesiam: «Quoniam confortavit seras portarum tuarum» (Ps. CXLVII, 13), suam portam confortare non potuit? Sed confirmavit profecto, et servavit intactam. Denique non est aperta.

 

57. Audiant igitur prophetam dicentem: «Non aperietur, eritque clausa», hoc est, non aperietur ab eo cui desponsabitur; non licebit enim ut aperiatur, per quam Dominus transibit. Et post eum, inquit, erit clausa, hoc est, non aperiet eam Ioseph; quoniam dicetur ei: «Noli timere accipere Mariam coniugem tuam; quod enim ex ea nascetur, de Spiritu sancto est» (Matth. I, 20).

51. Digam-me agora os que andam a espalhar esta questão o que é que disse o Senhor por meio do Profeta: «Agora vou reconduzir os cativos de Jacob e usarei de misericórdia para com a casa de Israel» (Ez. 39, 25). E mais abaixo: «Congregá-los-ei dentre os povos e os reunirei de todas as nações e manifestarei neles a minha santidade à vista de todos os povos. E saberão que eu sou o Senhor seu Deus, quando me manifestar a eles entre as nações. E não mais afastarei deles a minha face, por ter derramado a minha ira sobre a casa de Israel, diz o Senhor» (Ez. 39, 27-29).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

52. E mais abaixo o Profeta diz que viu a construção de uma cidade numa montanha muito elevada (Ez. 40, 2), cujo simbolismo das muitas portas era revelado. Uma dessas portas é descrita como fechada, acerca da qual se diz assim: «Conduziu-me até à porta exterior do santuário, que está voltada para o Oriente, e esta estava fechada. E o Senhor disse-me: Esta porta estará fechada e não será aberta, nem ninguém passará por ela, porque o Senhor Deus de Israel é que passará por ela. E estará fechada, porque este príncipe se sentará nela, para comer o pão diante do Senhor. Entrará pelo vestíbulo da porta e por ele sairá» (Ez, 44, 1-3). Que porta é esta, senão Maria? Está fechada, porque é virgem. Portanto Maria é a porta pela qual Cristo entrou no mundo, quando foi dado à luz num parto virginal, sem ter rompido o hímen da virgindade. Ficou intacto o baluarte do pudor e as marcas invioláveis da integridade fortificaram-se, quando saiu da Virgem Aquele cuja grandeza o mundo não podia conter.

 

 

 

 

53. «Esta porta estará fechada e não será aberta», diz o Profeta. Maria é a boa porta, que estava fechada e não era aberta. Passou por ela Cristo, mas não a abriu.

 

54. E, para que aprendamos que todo o homem tem uma porta pela qual Cristo entra, diz a Escritura: «Levantai as vossas portas, ó príncipes, levantai-vos pórticos eternos e entrará o Rei da glória» (Sl. 23, 7). Sendo assim, quanto mais esta porta não havia de estar em Maria, em quem Cristo tomou assento e saiu? Também há a porta do ventre. Por isso diz o santo Job: «Escureceram as estrelas da sua noite, porque não fechou as portas do ventre da minha mãe» (Job 3, 9 e 10).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

55. Portanto, há também uma porta do ventre, mas que nem sempre está fechada. Na verdade só uma pôde permanecer fechada, aquela pela qual saiu o Filho da Virgem sem rompimento do hímen genital. Por isso diz o Profeta: «Esta porta estará fechada e não será aberta, nem ninguém passará por ela», isto é, nenhum homem, «porque o Senhor – continua o Profeta – Deus de Israel é que passará por ela» (Ez. 44, 2). «Estará fechada», isto é, antes e depois da passagem do Senhor está fechada, «nem será aberta» por ninguém, nem se abriu, porque sempre teve como sua porta Cristo, que disse: «Eu sou a porta» (Jo. 10, 7), que ninguém pôde arrancar dela.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

56. Esta porta estava voltada para oriente, porque derramou a verdadeira luz, ela que gerou o Oriente e deu à luz o Sol da justiça. Ouçam então os insensatos: «Esta porta estará fechada», ela que só recebe o Deus de Israel. Aquele acerca de quem se disse à Igreja: «Ele reforçou os ferrolhos das tuas portas» (Sl. 147, 13), não havia de poder reforçar a sua própria porta? Mas é claro que a reforçou e a guardou intacta. Afinal ela não se abriu.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

57. Ouçam, pois, o Profeta que diz: «Não será aberta e estará fechada», isto é, não será aberta por aquele com quem ela vai ser desposada. Com efeito não será permitido que aquela porta, por onde o Senhor passará, seja aberta. E depois dele – diz o Profeta – estará fechada, isto é, José não a abrirá, porque lhe será dito: «Não temas receber Maria tua esposa, pois o que dela há-de nascer é fruto do Espírito Santo» (Mt. 1, 20).

 

Capítulo 9

Apresentam-se vários símbolos da virgindade e sua aplicação nas virgens consagradas.

 

58. Porta ergo clausa virginitas est: et hortus clausus virginitas: et fons signatus virginitas. Audi, virgo, diligentius apertis auribus, et clauso pudore, aperi manus, ut te pauper agnoscat: claude ostium, ne temerator irrepat: aperi mentem, serva signaculum.

 

59. Virga quoque a radice virginitas est, sic enim scriptum est: «Exiet virga a radice Iesse, et flos a radice eius ascendet» (Esai. XI, 1). Non cavata est haec virga, sed solida. Nemo ergo adurat virgam tuam, ut florem tuum custodias. Virga es, o virgo, non curveris, non inflectaris in terram, ut in te flos paternae radicis ascendat. 

 

 

60. Hortus clausus es, virgo, serva fructus tuos: non ascendant in te spinae, sed uvae tuae floreant. Hortus clausus es, filia, nemo auferat sepem tui pudoris: quia scriptum est: «Et destruentem sepem mordebit serpens» (Eccles. X, 8). Sed illam solam auferat, de qua dictum est: «Quid incisa est sepis?» (Gen. XXXVIII, 29). Nemo parietem tuum destruat, ne sis in conculcationem. Paradisus es, virgo, Evam cave.

 

 

61. Fons signatus es, virgo, nemo aquam tuam polluat, nemo conturbet; ut imaginem tuam in fonte tuo semper attendas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

62. Porta clausa es, virgo, nemo aperiat ianuam tuam, quam semel clausit Sanctus et Verus, qui habet clavim David, qui aperit, et nemo claudit: claudit et nemo aperit (Apoc. III, 7). Aperuit tibi Scripturas, nemo eas claudat: clausit pudorem tuum, nemo aperiat eum.

58. Por conseguinte a porta fechada é a virgindade. Também o jardim fechado é a virgindade e a fonte selada é a virgindade. Escuta mais atentamente, ó virgem, com os ouvidos abertos, e com o pudor fechado abre as mãos, para que o pobre te reconheça. Fecha a porta, para que o violador não entre. Abre a mente, guarda o selo.

 

59. Também o rebento proveniente da raiz é a virgindade, pois assim está escrito: «Sairá um rebento do tronco de Jessé e uma flor brotará da sua raiz» (Is. 11, 1). Este rebento não foi perfurado, mas está compacto. Portanto que ninguém queime o teu rebento, para que tu guardes a tua flor. És rebento, ó virgem, não te curves, não te inclines para a terra, para que em ti brote a flor da raiz paterna.

 

60. O jardim está fechado, ó virgem, guarda os teus frutos. Que em ti não brotem espinhos, mas floresçam as tuas uvas. O jardim está fechado, ó filha, que ninguém retire a sebe do teu pudor, porque está escrito: «O que derruba uma sebe será mordido por uma serpente» (Ecle. 10, 8). Mas que a retire só aquela acerca de quem foi dito: «Porque foi cortada a sebe?» (Gen. 38, 29). Que ninguém destrua a tua parede, para que não sejas calcada aos pés. És um paraíso, ó virgem, foge da Eva.

 

 

61. És uma fonte selada, ó virgem, que ninguém polua a tua água, que ninguém a turve, para que vejas sempre a tua imagem na tua fonte.

 

62. És uma porta fechada, ó virgem, que ninguém abra a tua porta, que foi fechada uma vez pelo Santo e Verdadeiro, que tem a chave de David, que abre e ninguém fecha, fecha e ninguém abre (Apoc. 3, 7). Ele abriu-te as Escrituras, que ninguém as feche. Ele fecha o teu pudor, que ninguém o abra.

 

Capítulo 10

A virgindade é uma coroa na mão do Senhor que é uno. A doutrina da Santíssima Tirndade.

 

63. «Venio, inquit, cito, tene quod habes: «nemo accipiat coronam tuam» (Apoc. III, 11). Quae est corona tua, nisi illa de qua dictum est: «Et eris corona decoris in manu Domini» (Esai. LXII, 3)?

 

64. Quis hoc dicit, nisi ille de quo dixit Ecclesiastes: «Est unus et non est secundus» Eccles. IV, 8)? Quis est iste, nisi ille de quo dictum est: «Magister vester unus est Christus» (Matth. XXIII, 10)? Unus est, quia unigenitus Dei filius: quia solus, ut scriptum est: «Quia expandit coelum solus, et ambulat sicut in terra super mare» (Iob. IX, 8). Hic ergo non secundus, quia primus est: non est secundus, quia unus est: «Unus Deus pater, ex quo omnia, et nos in illo: et unus Dominus Iesus Christus, per quem omnia, et nos per ipsum» (I Cor. VIII, 6). Unus Deus Pater, et unus Deus Filius, et unus Spiritus sanctus, sicut scriptum est: «Haec autem omnia operatur unus atque idem Spiritus, dividens singulis prout vult» (I Cor. XII, 11). Unus, inquit, quia unus Deus. Nullus secundus; quia quod vult facit, non quod imperatur. Unus ergo Pater Deus, et unus Dei Filius. Unus et unus, quia non sunt duo dii. Unus Filius; quia cum Patre unum est, sicut ipse dixit: «Ego et Pater unum sumus» (Ioan. X, 29). Et unus Spiritus, quia unitas Trinitatis est, non ordine distincta, nec tempore.

 

65. Sed dicunt lectum: «Ite, baptizate gentes in nomine Patris et Filii et Spiritus sancti» (Matth. XXVIII, 19); et obiiciunt, quia primo Patrem nominavit, secundo Filium, tertio Spiritum sanctum. Numquid ergo, quia dicit Evangelium: «In principio erat Verbum, et Verbum erat apud Deum» (Ioan. I, 1), inferiorem significavit Patrem; quia primo Verbum Dei in principio semper esse ac fuisse memoravit? Aut cum dixit Apostolus: «In regno Christi et Dei» (Ephes. V, 5), ordinem fecit? Aut cum dicit ipse Dominus Iesus: «Spiritus Domini super me, propter quod unxit me, evangelizare pauperibus misit me, praedicare captivis remissionem (Luc. IV, 18), eminentiorem Filio Dei Spiritum esse testatus est?

 

66. Advertis, virgo, quemadmodum ista solvantur. Aperi ad haec aures tuas, os tuum claude. Aperi aures, ut fidem audias: claude os, ut teneas verecundiam.

 

 

67. Deinde illud legunt, quia dixit: «In nomine Patris et Filii et Spiritus sancti»; et non intelligunt quod ante praemiserit: «In nomine», inquit. Tres personas quidem significavit, sed unum Trinitatis nomen asseruit.

 

68. Unus itaque Deus, unum nomen, una divinitas, una maiestas. Nullus ergo secundus: quia principium omnium Trinitas est, et Trinitatis primatus super omnia est. Ergo unus et non est secundus. Unus est, qui secundum non habet; quia unicus solus sine peccato, solus sine adiutorio, qui ait: «Respexi, et non erat adiutor» (Esai. LXIII, 5).

63. Diz a Escritura: «Venho em breve: guarda o que tens, para que ninguém te arrebate a tua coroa» (Apoc. 3, 1). Qual é a tua coroa, senão aquela acerca da qual se disse: «Serás coroa esplendorosa nas mãos do Senhor» (Is. 62, 3)?

 

64. Quem é que diz isto, senão aquele acerca de quem disse o Eclesiastes: «É um só e não há outro» (Ecle. 4, 8)? Quem é este, senão aquele de quem se disse: «O vosso mestre é um só, Cristo» (Mt. 23, 10)? É um só, porque é o Unigénito Filho de Deus, e é sozinho, como está escrito: «Ele sozinho formou a extensão dos céus e caminha sobre o mar, como por terra firme» (Job 9, 8). Portanto este não tem outro junto dele, porque é o primeiro e porque é único. «Um só é Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos, e um só é o Senhor Jesus Cristo, por meio do qual tudo existe e mediante o qual nós existimos» (I Cor. 8, 6). Um só é Deus Pai e um só é Deus Filho e um só é o Espírito Santo, tal como está escrito: «Tudo isto, porém, o realiza o único e o mesmo Espírito, distribuindo a cada um conforme lhe apraz» (I Cor. 12, 11). É um só, porque Deus é único. Não há nenhum outro, porque faz o que quer e não o que lhe é ordenado. Por conseguinte um só é o Deus Pai e um só o Deus Filho. Um só e um só, pois não são dois deuses. Um só Filho, porque é um só com o Pai, tal como Ele próprio afirmou: «Eu e o Pai somos um só» (Jo. 10, 29). E um só Espirito, porque há uma unidade da Trindade, sem distinção de ordem nem de tempo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

65. Mas eles dizem que pode ler-se: «Ide e baptizai todos os povos em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo» (Mt. 28, 19), e objectam que em primeiro lugar foi nomeado o Pai, em segundo lugar o Filho e em terceiro lugar o Espírito Santo. Acaso então, lá porque o Evangelho diz: «No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus» (Jo. 1, 1), isso significa que o Pai é inferior, pois lembrou primeiro que o Verbo de Deus é e foi sempre no princípio? Ou será que, quando o Apóstolo disse: «No reino de Cristo e de Deus» (Ef. 5, 5), estabeleceu uma ordem? Ou será que, quando o próprio Senhor Jesus diz: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu e me enviou a anunciar o Evangelho aos pobres, a proclamar a redenção aos cativos» (Lc. 4, 18), afirmou que o Espírito é maior que o Filho de Deus?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

66. Já estás a ver, ó virgem, como estas coisas se esclarecem. Abre os teus ouvidos a estas realidades e fecha a tua boca. Abre os ouvidos, para ouvires a fé, e fecha a boca, para manteres a honestidade.

 

67. Depois eles lêem aquilo que o Senhor disse: «Em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo», e não entendem que Ele colocou antes o «em nome». Na verdade ele apresentou três pessoas, mas afirmou um só nome da Trindade.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

68. Assim há um só Deus, um só nome, uma só divindade e uma só majestade. Portanto não há outro, porque o princípio de tudo é a Trindade e o primado da Trindade esta acima de tudo. Por conseguinte é um só e não há outro. É um só o que não tem outro, porque o único que não tem pecado, o único que não tem ajuda é Aquele que diz: «Olhei e ninguém me ajudava» (Is. 63, 5)

 

Capítulo 11

Cristo é o primeiro e o último.

 

69. «Non est finis labori eius» (Eccles. IV, 8); quia pro omnibus advocatus noster est apud Patrem, et infirmitates nostras suscepit, et pro nobis dolet, pro nobis infirmatur, sicut ait: «Aeger eram, et non visitastis me» (Matth. XXV, 43).

 

70. «Cuius oculus non satiatur divitiis» (Ibid.); quia ipse est altitudo divitiarum sapientiae et scientiae Dei, in quo sunt thesauri mysteriorum coelestium. Cur ergo saeculo potius laboramus, et fraudamus animam nostram tantae bonitatis dispendio, qui nulli alii nisi huic servire Domino debemus?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

71. Hic ergo non est secundus. Ego certe hoc testimonium defero: lego quia primus est, lego quia non est secundus. Illi qui secundum aiunt, doceant lectione. 

 

72. Sed dicit aliquis quia scriptum est: «Primus homo de terra terrenus, secundus homo de coelo coelestis» (ICor. XV, 47). Verum attende quid dicat. Secundus, inquit, homo; quasi hominem secundum dixit. Et ego dico quia primus est secundum divinitatem, ante quem nullus: secundus autem secundum carnem, quia post Adam.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

73. Ego plus dico, non solum secundum hominem, sed etiam novissimum. Denique sic habes scriptum: «Factus est primus homo Adam in animam viventem, novissimus Adam in spiritum vivificantem» (Ibid., 45). Vide clementiam Christi: ipse est primus et novissimus. Qui primus erat, propter nos se novissimum fecit. Primus, quia per ipsum omnia: novissimus, quia per ipsum resurrectio. Descendit enim et proiecit se, ut caderet, infra omnes se faciens ut omnes iacentes levaret.

 

74. Unde et ait Ecclesiastes: «Quia si ceciderit unus, alter eriget socium suum: et vae illi uni cum ceciderit, et non est secundus, ut eum erigat. Et quidem si dormiant duo, est calor illis: et unus, quomodo calefiet» (Eccles. IV, 10, 11)? Hoc est, qui Christum habet secum, etsi ceciderit, resurget: etsi mortuus fuerit, reviviscet; quia adest illi qui venit ignem in terram mittere (Luc. XII, 49). Denique et Elisaeus cum puerum resuscitaret, insufflavit illi (IV Reg. IV, 34), ut infunderet vitae calorem. Habeto ergo tecum hunc ignem in pectore tuo, qui te resuscitet; ne frigus tibi perpetuae mortis irrepat.

 

75. Hic ergo iuvenis se proiecit, qui venit per Mariam, et infundebat vitae calorem pectoribus audientium. Unde dicunt illi in Evangelio: Nonne cor nostrum ardens erat in nobis, cum aperiret nobis Scripturas (Luc. XXIV, 32)?

69. «O seu sofrimento não tem fim» (Ecle. 4, 8), porque em tudo Ele é nosso advogado junto do Pai e assumiu as nossas enfermidades, sofre por nós e por nós está doente, tal como diz: «Estava doente e não me visitastes» (Mt 25, 43).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

70. «Os seus olhos não se fartam de riquezas» (Ecle. 4, 8), porque ele é a profundidade das riquezas da sabedoria e da ciência de Deus, em quem estão os tesouros dos mistérios celestes. Porque é que então preferimos preocupar-nos com o mundo e defraudamos a nossa alma com o desperdício de tanta bondade, nós que não devemos servir a mais ninguém senão a este Senhor?

 

71. Portanto não há outro. Eu certamente dou este testemunho: leio que ele é o primeiro, leio que não há outro. Aqueles que dizem que há outro, que mo ensinem com a leitura.

 

72. Mas alguém dirá que está escrito: «O primeiro homem, tirado da terra, é terreno; o segundo homem, vindo do céu, é celeste» (ICor. 15, 47). Presta atenção ao que é dito. Aqui fala-se de um segundo homem, como se tivesse dito que há um outro homem. E eu digo que há um primeiro de condição divina, antes do qual não há ninguém; e que há um segundo de condição carnal, porque depois de Adão.

 

73. E digo mais: ele é não só o segundo homem, mas também o último. Afinal encontras escrito assim: «O primeiro homem, Adão, foi feito um ser vivente e o último Adão, um espírito que vivifica» (ICor. 15, 45). Repara na clemência de Cristo: Ele é o primeiro e o último. Aquele que era o primeiro fez-se o último por causa de nós. Primeiro, porque por ele tudo fei feito; último, porque por ele aconteceu a ressurreição. Com efeito ele desceu e lançou-se a si mesmo para cair, ficando abaixo de todos, para levantar todos os que estavam caídos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

74. Por isso também diz o Eclesiastes: «Porque se um cair, o outro levanta o seu companheiro; mas ai daquele que cair sozinho, sem ter um outro que o levante. E se dois dormirem juntos, estarão quentes; mas um só como se há-de aquecer?» (Ecle. 4, 10-11). Isto é, quem tem Cristo consigo, embora caia, levantar-se-á; embora tenha morrido, reviverá, poque está junto dele Aquele que vem lançar o fogo à terra (Lc. 12, 49). Afinal também Eliseu, ao ressuscitar o menino, soprou-lhe (4Re. 4, 34), para lhe infundir o calor da vida. Tem, pois, contigo este fogo no teu peito, para que te ressuscite, não aconteça que o frio da morte eterna te envolva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

75. Este é, pois, o jovem que se lançou a si mesmo, que veio por Maria e que infundia o calor da vida nos corações dos que o escutavam. Por isso dizem no Evangelho: «Não nos ardia cá dentro o nosso coração, quando ele nos abria as Escrituras?» (Lc. 24, 32).

 

Capítulo 12

Cristo é o segundo jovem mencionado no Eclesiastes, que ressuscita e faz com que todos ressuscitem.

 

76. Hic est iuvenis secundus, ut dicit Ecclesiastes: «Vidi universos qui vivunt, qui ambulant sub sole cum iuvene secundo, quis resurget pro eo» (Eccles. IV, 15)? Quis enim pro Christo resurget, cum ille pro omnibus resurrexerit, et in illo omnes resurrexerint, cum spem resurrectionis acceperint?

 

77. De Christo autem dictum liquet, quando advertis congruere istum locum cum benedictione vel prophetia Iacob, qui ait de Iuda: «Quis suscitabit eum» (Gen. XLIX, 9)? Non utique alter; quia ipse se susciptavit, sicut ipse ait: «Solvite templum hoc, et in triduo resuscitabo illud» (Ioan. II, 19). Hoc autem dicebat de templo corporis sui. 

 

78. Illud quoque vere Christo convenit soli, quod addidit: «Non est finis omni populo eius» (Eccles. IV, 16); quia populus Christi innumerabilis finem non habet, cui fides resurrectionis aeternae perpetuae vitae acquirit aetatem. Secundum carnem itaque et iuvenem dictum, et cadere vel resurgere dubium non est. Denique et illud annexuit; quia optimus puer pauper et sapiens (Ibid. 13): pauper enim factus est, cum dives esset. 

 

79. Ipse ergo rex Israel transivit hanc portam, ipse dux sedit in ea; quando «Verbum caro factum est, et habitavit in nobis» (Ioan. I, 14), quasi Rex sedens in aula regali uteri virginalis, vel in olla ferventi, sicut scriptum est: Moab aula spei, vel olla spei meae (Psal. LIX, 10). Utrumque enim diversis in codicibus invenitur. Aula regalis est virgo, quae non est viro subdita, sed Deo soli. Est et olla uterus Mariae, quae Spiritu ferventi qui supervenit in eam, replevit orbem terrarum, cum peperit Salvatorem.

 

80. Qui manducavit in porta sedens (Ezech. XLIV, 3), utique cibum illum de quo dicit: «Meus cibus est ut faciam voluntatem Patris mei qui in coelo est» (Ioan. IV, 34).

76. Este é o segundo jovem, como diz o Eclesiastes: «Vi todos os seres vivos que andam debaixo do Sol com o segundo jovem. Quem ia ressuscitará por ele?» (Ecle. 4, 15). Quem é que ia ressuscitar por Cristo, quando ele é que ressuscitou por todos e nele todos ressuscitaram, recebendo a esperança da ressureição?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

77. É claro que se está a falar de Cristo, quando notas que esta passagem concorda com a bênção ou a profecia de Jacob, que diz acerca de Judá: «Quem o despertará?» (Gen. 49, 9). Realmente não há outro, porque ele próprio se despertará a si mesmo, tal como ele próprio diz: «Destruí este templo e eu em três dias o levantarei» (Jo. 2, 19). Ora ele falava do templo do seu corpo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

78. Aquela passagem também se aplica só a Cristo, pois acrescentou: «Não tem fim todo o seu povo» (Ecle. 4, 16). O povo inumerável de Cristo não tem fim, pois a fé da ressurreição eterna dá-lhe uma duração de vida eterna. Assim, não há dúvida de que segundo a carne também o dito jovem cai e se levanta. Por fim, acrescentou ainda que ele é um um jovem pobre e sábio (Ecle. 4, 13). Com efeito Cristo, sendo rico, fez-se pobre.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

79. Por conseguinte o próprio rei de Israel passou esta porta, esse príncipe sentou-se nela, quando «o Verbo se fez canre e habitou entre nós» (Jo. 1, 14), como um Rei que se senta no palácio real do ventre virginal, ou na bacia de água quente, como está escrito: «Moab é o palácio da minha esperança, ou a bacia da minha esperança» (Sl. 59, 10). Na verdade ambas estas imagens se enontram nos códices. O palácio real é a Virgem, que não se entregou a um homem, mas só a Deus. O ventre de Maria é também a bacia, que, com o Espírito fervente que veio sobre ela, encheu o mundo, quando deu à luz o Salvador.

 

 

80. Ele é realmente aquele que, sentado na porta (Ez. 44, 3), comeu aquele alimento de que Ele falou: «O meu alimento é fazer a vontade de meu Pai que está no céu» (Jo. 4, 34.)

 

Capítulo 13

A virgindade de Maria simbolizada na bacia e na nuvem leve, donde vem a chuva de bênçãos e o perfume que as virgens sagradas devem receber.

 

81. O divitias Marianae virginitatis! Quasi olla ferbuit, et quasi nubes pluit in terras gratiam Christi; scriptum est enim de ea: «Ecce Dominus venit sedens super nubem levem» (Esai. XIX, 1). Vere levem quae coniugii onera nescivit: vere levem, quae levavit hunc modum de gravi foenore peccatorum. Levis erat, quae remissionem peccatorum utero gestabat. Denique levavit Ioannem in utero constitutum, qui ad vocem eius exsilivit, et infans exsultavit in gaudio, prius sensu devotionis quam spiritus infusione vitalis animatus (Luc. I, 41).

 

82. Excipite igitur, excipite, sacrae virgines, nubis huius pluviam spiritalem, temperamentum flagrantiae corporalis; ut corporis omnes restinguatis ardores, atque interna mentis vestrae humescant. Huius imbrem nubis sacratae patres nostri annuntiaverunt nobis salutem mundi futuram (Ps. LXXI, 6). Hunc imbrem significabant esse venturum stillicidia stillantia super terram, quae Hierobaal poposcit et meruit (Iudic. VI, 36 et seq.). Bonam nubem sequimini, quae fontem intra se genuit, quo rigavit orbem terrarum. Excipite ergo voluntariam pluviam, pluviam benedictionis, quam haereditati suae Dominus effudit. Excipite aquam, et non effluat vobis; quia nubes est, diluat vos, et sacro humore perfundat; quia olla est, spiritu vaporet aeterno.

 

83. Excipite itaque ex hac Moabitide olla (Ps. LIX, 10) gratiae coelestis unguentum, nec vereamini ne deficiat: quod exinanitum est, et plus redundat; quia in omnem terram odor eius exivit, sicut scriptum est: «Unguentum exinanitum est nomen tuum; ideo adolescentulae dilexerunt te» (Cant. I, 3). Descendat istud unguentum in ima praecordia, viscerumque secreta, quo non deliciarum odores sancta Maria, sed divinae gratiae spiramenta redolebat.

 

84. Haec pluvia Evae restinxit appetentiam: hoc unguentum foetorem haereditarii erroris abstersit, hoc unguentum Maria soror Lazari in pedes Domini effudit, et tota domus pio repleta odore fragravit (Ioan. XII, 3).

 

85. Nec ulla se pauperem putet, nulla se arbitretur inopem, nulla metuat ne pretiosum hoc unguentum emere non possit, aut fontem istum putet esse venalem. «Qui sititis, inquit, ite ad aquam: et quicumque non habetis argentum, ite et emite, et bibite sine argento» (Esai. LV, 1). Et supra ait: «Gratis venumdati estis, et sine argento redimemini» (Esai. LII, 3). Ideo pauper factus est Dominus, cum dives esset; ut eum omnes emant, et egenos praecipue sua paupertate locupletet.

 

86. Parate igitur vasa Domini, ut excipiatis hunc fontem aquae vivae, fontem virginitatis, integritatis unguentum, odorem fidei, et suavis misericordiae gratia florulentum. Induamini agni eius innocentiam, qui «cum malediceretur, non remaledixit: cum percuteretur, non repercussit (I Petr. II, 23).

81. Ó riquezas da virgindade de Maria! Ela é como uma bacia de água fervente e como uma nuvem que derrama sobre a terra a graça de Cristo, pois acerca dela está escrito: «Eis o Senhor, que vem montado sobre uma leve nuvem» (Is. 19, 1). Tão leve que não conheceu o peso do casamento, tão leve que aliviou este mundo da pesada dívida dos pecados. Tão leve que transportava no seu ventre a remissão dos pecados. Até despertou João dentro do ventre materno, que deu um salto ao ouvir a sua voz e sem falar exultou de alegria, animado por um sentimento de devoção, antes de ser animado pela infusão do sopro vital (Lc. 1, 41).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

82. Recebei, pois, ó virgens consagradas, recebei a chuva espiritual desta nuvem e a temperança da paixão corporal, para apagardes todos os ardores da vossa carne e para que seja irrigado o íntimo da vossa alma. Os nossos antepassados anunciaram-nos que a chuva desta sagrada nuvem havia de ser a salvação do mundo (Sl. 71, 6). Eles diziam que esta chuva havia de vir como gotas de orvalho sobre a terra, que Gedeão pediu a alcançou (Jz. 6, 36 e ss). Imitai a boa nuvem, que gerou dentro de si a fonte que regou a terra inteira. Recebei, portanto, a chuva generosa, a chuva de bênçãos que o Senhor derramou sobre a sua herança. Recebei a água e que ela não escorra de vós. Visto que ela é nuvem, que ela vos lave e vos inunde da sagrada humidade; visto que ela é bacia, que ela exale em vós o sopro eterno.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

83. Recebei desta bacia de Moab (Sl. 59, 10) o perfume da graça celeste e não temais que ele venha a faltar. O que se espalhou, difunde-se ainda mais, porque o seu odor encheu a terra inteira, tal como está escrito: «O teu nome é perfume que se espalhou, por isso as donzelas te amaram» (Cant. 1, 3). Desça este perfume até ao íntimo dos vossos corações, e ao interior das vossas entranhas, com o qual a Santa Maria exalava não o cheiro dos prazeres, mas os odores da divina graça.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

84. Esta chuva diminuiu o desejo de Eva. Este perfume eliminou o fedor do pecado hereditário, este perfume foi derramado por Maria, irmã de Lázaro, nos pés do Senhor e toda a casa se encheu da fragância deste piedodo cheiro (Jo. 12, 3).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

85. Que nenhuma de vós se considere pobre, que nenhuma se julgue indigente, que nenhuma tema não poder comprar este precioso perfume, nem considere que esta fonte pode ser vendida. «Vós que tendes sede – diz o Profeta – ide à nascente das águas. Vós todos que não tendes dinheiro ide e comprai, e bebei sem dinheiro» (Is. 55, 1). E mais acima diz: «Fostes vendidos por nada, sereis resgatados sem dinheiro» (Is. 52, 3). Por isso o Senhor, sendo rico, fez-se pobre, para que todos o comprem e para que ele enriqueça principalmente os indigentes com a sua pobreza.

 

86. Preparai, pois, os vasos do Senhor, para receberdes esta fonte de água viva, fonte de virgindade, perfume de integridade, odor da fé, canteiro da suave misericórdia. Revesti-vos da inocência deste cordeiro, que «ao ser insultado, não respondia com insultos; ao ser maltratado, não respondia com ameaças» (1Ped. 2, 23).

 

Capítulo 14

As virgens são instigadas a imitar a Virgem Maria que prefigura a Igreja.

 

87. Hanc imitamini, filiae cui pulchre convenit illud quod de Ecclesia prophetatum est: «Speciosi facti sunt gressus tui in calceamentis, filia Aminadab» (Cant. VII, 1); eo quod speciose Ecclesia Evangelii praedicatione processit. Speciose procedit anima, quae corpore velut calcamento utitur; ut quo velit, suum possit sine impedimento ullo circumferre vestigium.

 

88. In hoc calceamento speciose processit Maria, quae sine ulla commixtione corporeae consuetudinis auctorem salutis Virgo generavit. Unde egregie Ioannes ait: «Non sum dignus solvere corrigiam calceamentorum eius (Ioan. I, 27), id est, non sum dignus Incarnationis mysterium comprehendere angustiis mentis humanae, atque inopis vilitate sermonis absolvere. Unde et Esaias dicit: «Generationem eius quis ennarrabit» (Esai. LIII, 8)? Speciosi ergo gressus vel Mariae vel Ecclesiae; quoniam speciosi pedes evangelizantium.

 

89. Quam pulchra etiam illa quae in figura Ecclesiae de Maria prophetata sunt; si tamen non membra corporis, sed mysteria generationis eius intendas! Dicitur enim ad eam: «Moduli femorum tuorum similes torquibus, operi manuum artificis. Umbilicus tuus crater tornatilis non deficiens mixto. Venter tuus sicut acervus tritici muniti inter lilia» (Cant. VII, 1 et seq.); eo quod continens sibi in omnibus Christi ortus ex Virgine, sicut victores solent saecularium praeliorum, strenuorum virorum donatis torquibus honorare cervices; ita iugum nostrum levavit, ut fidelium colla virtutis insignibus coronaret.

 

90. Vere autem alvus ille Mariae crater tornatilis, in quo erat Sapientia, quae miscuit in cratere vinum suum (Prov. IX, 2), indeficientem cognitionis piae gratiam divinitatis suae plenitudine subministrans.

 

91. In quo virginis utero simul acervus tritici, et lilii floris gratia germinabat; quoniam et granum tritici generabat, et lilium. Granum tritici secundum quod scriptum est: «Amen, amen dico vobis, nisi granum tritici cadens in terram, mortuum fuerit, ipsum solum manet» (Ioan. XII, 24). Sed quia de uno grano tritici acervus est factus, completum est illud propheticum: «Et convalles abundabunt frumento» (Ps. LXIV, 14), quia granum illud mortuum, plurimum fructum attulit. Hoc itaque granum omnes homines perpetua coelestium munerum esca saturavit: consummatumque est illud prophetici oris eloquium, dicente eodem David: «Cibavit eos ex adipe frumenti, et de petra melle saturavit eos» (Ps. LXXX, 17).

 

92. In hoc grano esse etiam lilium divina testantur oracula; quia scriptum est: «Ego sum flos campi, et lilium convallium: sicut lilium in medio spinarum» (Cant. II, 1). Christus erat lilium in medio spinarum, quando erat in medio Iudaeorum.

87. Imitai, ó filhas, aquela a quem muito bem se aplica o que foi profetizado acerca da Igreja: «Formosos se tornaram os teus pés dentros das sandálias, ó filha de Aminadab» (Cant. 7, 1), porque a Igreja caminhou elegantemente ao fazer a pregação do Evangelho. Assim elegantemente caminha a alma que utiliza o corpo como umas sandálias, para poder ir sem nenhum impedimento para onde quiser.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

88. Com estas sandálias caminhou Maria elegantemente, ela que, sem nenhum contacto carnal, gerou virgem o autor da salvação. Por isso João diz de maneira brilhante: «Não sou digno de desatar a correia das suas sandálias» (Jo. 1, 27), isto é, não sou digno de compreender o mistério da Incarnação com a estreiteza da minha mente humana, nem de o explicar com a insignificância da minha pobre palavra. É o que também diz Isaías: «Quem poderá descrever a sua geração?» (Is. 53, 8). Formosos, portanto, são os pés de Maria e da Igreja, porque formosos são os pés dos que anunciam o Evangelho.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

89. Quão belas são também aquelas coisas que, prefigurando a Igreja, foram profetizadas acerca de Maria[20], se fores capaz de entender nelas, não os membros do corpo, mas os mistérios da sua geração! Com efeito é-lhe dito a ela: «As curvas dos teus quadris parecem colares, obra de mãos de artista. O teu umbigo é uma taça redonda onde não falta o vinho doce. O teu ventre é um monte de trigo, todo cercado de lírios» (Cant. 7, 2-3). É que o nascimento de Cristo, saído da Virgem, contém em si todos estes elementos. Tal como os vencedores das lutas deste mundo costumam honrar os pescoços dos homens valentes com a oferta de colares, assim também ele aliviou o nosso jugo, para coroar os pescoços dos fiéis com as insígnias da virtude.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

90. Na verdade aquele seio de Maria é a taça redonda, onde estava a Sabedoria, que preparou o seu vinho na taça, servindo-nos a graça indefectível do santo conhecimento com a plenitude da sua divindade.

 

91. Nesse ventre virginal havia ao mesmo tempo um monte de trigo e germinava a graça da flor do lírio, porque ela gerava um grão de trigo e um lírio. É grão de trigo, na medida em que está escrito: «Em verdade vos digo, se o grão de trigo caído na terra não morrer, ficará só» (Jo. 12, 24). Mas, uma vez que o monte de trigo foi feito a partir de um único grão de trigo, compriu-se aquela profecia: «Os vales enchem-se de trigo» (Sl. 64, 14), porque aquele grão morto, deu muito fruto. Assim este grão saciou todos os homens com o alimento eterno dos dons celestes e consumou-se aquela palavra do oráculo profético, quando o mesmo David dizia: «Alimentou-os com a flor da farinha e saciou-os com o mel do rochedo» (Sl. 80, 17).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

92. Os oráculos divinos atestam que o lírio está também neste grão, porque assim está escrito: «Eu sou a flor do campo e o lírio dos vales. Tal como o lírio estou no meio dos cardos» (Cant. 2, 1). Cristo era o lírio no meio dos cardos, quando estava no meio dos judeus.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo 15

As virgens são os lírios de Cristo e Cristo é o monte de trigo cercado de lírios, segundo a imagem do Cântico dos Cânticos.

 

93. Audi, virgo, quid dicat: «Lilium, inquit, convallium» Christus, id est, humilium animarum et mitium. Esto ergo mitis, humilis, atque mansueta, ut in te sicut lilium germinet Christus. De quo et alibi habes: «Labia eius lilia stillantia myrrham primam» (Cant. V, 13); id est, qui Christi passionem loquuntur et suo ore concelebrant, ac mortificationem eius in suo circumferunt corpore, Christi lilia sunt; specialiter sacrae virgines, quarum est splendida et immaculata virginitas. Unde plerique accipiunt quod Ecclesia videatur dicere: Ego sum flos campi, et lilium convallium: quae in hac convalle istius mundi gratiam boni odoris exhalat, sedulae confessione pietatis. Denique et alibi dicit: «Frater meus descendit in hortum suum, in phialas aromatis, pascere in hortis, et colligere lilia. Ego fratri meo, et frater meus mihi, qui pascit inter lilia» (Cant. VI, 1, 2).

 

94. Ex illo ergo utero Mariae diffusus est in hunc mundum acervus tritici muniti inter lilia; quando natus est ex ea Christus, cui dicit propheta David: «Benedices coronam anni benignitatis tuae, et campi tui replebuntur ubertate. Pinguescent fines deserti, et exsultatione colles accingentur. Induti sunt arietes ovium, et convalles abundant frumento; etenim clamabunt, et hymnum dicent (Ps. LXIV, 12 et seq.).

 

95. Quis est annus Dominicae bonitatis, nisi ille de quo dictum est: Tempore accepto exaudivi te, et in die salutis adiuvi te (Esai. XLIX, 8); quando populorum fide Ecclesia abundavit, iustitiam induit sacerdotes (Ps. CXXXII, 9)? Unde et Apostolus dicit: «Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis» (IICor. VI, 2); quando venit Dominus praedicare annum Domini acceptum, et diem retributionis, sicut in Evangelio suo ipse memoravit dicens: Spiritus Domini super me, propter quod unxit me, etc. (Luc. IV, 18).

 

96. Tunc ergo Dominus operibus suis et gloria et honore sui tempus coronavit adventus; totus enim ille annus conversationis eius in hoc mundo diversarum habuit certamina passionum. Vicit Herodem parvulus (Matth. II, 16), de quo in passione infantium triumphavit. Esurivit, sitivit, pro nobis vapulavit, pro nobis contumeliarum indigna toleravit, crucem ascendit, mortuus est pro nobis.

93. Escuta, ó virgem, o que diz a Escritura: Cristo é «o lírio dos vales», isto é, das almas humildes e mansas. Sê, portanto, mansa, humilde e dócil, para que em ti germine Cristo, como um lírio. Noutra passagem também podes encontrar isto acerca dele: «os seus lábios são lírios, que gotejam mirra de primeira» (Cant. 5, 13), isto é, os que anunciam a paixão de Cristo, que a celebram com as palavras da sua boca e que transportam no seu corpo os sinais da sua morte, são lírios de Cristo. São-no especialmente as virgens consagradas, cuja virgindade é esplêndida e imaculada. Por isso muitos pensam que a Igreja parece dizer: “Eu sou a flor do campo e o lírio dos vales”, que no vale deste mundo exala a graça do bom odor, com a confissão da diligente piedade. Por fim, também se diz numa outra passagem: «O meu amado desceu ao seu jardim, ao canteiro dos aromas, para apascentar nos jardins e para colher lírios. Eu sou para o meu amado e o meu amado é para mim, ele é o pastor entre os lírios» (Cant. 6, 1-2).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

94. A partir daquele ventre de Maria foi derramado neste mundo o monte de trigo cercado de lírios, quando dela nasceu Cristo, a quem o profeta David diz: «Coroas o ano com os teus benefícios; por onde passas, brota a abundância. Vicejam as pastagens do deserto, as colinas vestem-se de festa. Os campos cobrem-se de rebanhos e os vales enchem-se de trigo. Tudo canta e grita de alegria (Sl. 64, 12-14).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

95. Quem é o ano dos benefícios do Senhor, senão aquele acerca de quem foi dito: «No tempo da graça eu te ouvi e no dia da salvação te escutei» (Is. 49, 8), quando a Igreja se encheu da fé dos povos e revestiu os sacerdotes da justiça (Sl. 132, 9)? Por isso também o Apóstolo diz: «Eis o tempo favorável, eis o dia da salvação» (2Cor. 6, 2), quando o Senhor veio anunciar o ano favorável do Senhor e o dia da recompensa, tal como Ele próprio lembrou no seu Evangelho, dizendo: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu, etc.» (Lc. 4, 18).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

96. Nessa ocasião, o Senhor coroou de glória e honra com as suas obras o tempo da sua chegada. Com efeito todo aquele ano da sua estadia neste mundo teve combates de diversos sofrimentos. Em pequeno venceu Herodes (Mt. 2, 16), de quem triunfou no massacre dos inocentes[21]. Teve fome, teve sede, foi açoitado por nós, suportou indignas afrontas por nós, subiu à cruz e morreu por nós.

 

Capítulo 16

Cristo foi coroado pela sua Mãe. Ele é Deus e homem.

O simbolismo da túnica de Jacob aplicado às virgens consagradas.

 

97. Vides quanta certamina! Sed tamen non avarus exactor praemii, cui abundavit una coelestis corona virtutis. Unde egredimini, filiae Hierusalem, sicut vos hortatur Scriptura divina in Canticis canticorum: «Egredimini et videte regem Salomonem in corona, qua coronavit eum mater eius in die sponsalium eius, et in die iucunditatis cordis eius» (Cant. III, 11); quia «fecit sibi, inquit, charitatem a filiabus Hierusalem» (Cant. III, 10), hoc est: Egredimini ex his angustiis et sollicitudinibus corporalibus, egredimini ex hac delectatione carnali, et peregrinamini de corpore, ut adesse Domino possitis; quoniam qui in carne sunt, Domino suo placere non possunt. Dicitur ergo vobis quia non estis in carne, sed in spiritu (Rom. VIII, 8, 9), si potueritis comprehendere Salomonis veri illius pacifici charitatem, quam fecit sibi ipse; et ideo coronam accepit a matre.

 

98. Beata mater Hierusalem, beatus et Mariae uterus, qui tantum Dominum coronavit. Coronavit eum quando formavit: coronavit eum, quando generavit; quia etsi eum sine aliqua sui operatione formaverit [quia Spiritus sanctus supervenit in virginem; unde et ipse ait: «Inoperatum meum viderunt oculi tui» (Ps. CXXXIX, 16)], tamen hoc ipso quod ad omnium salutem eum concepit et peperit, coronam capiti eius aeternae pietatis imposuit; ut per fidem credentium fieret omnis viri caput Christus (ICor. XXI, 3). Inoperata est ergo et caro Christi, quem ut Maria virgo conciperet, inusitato quodam novoque Incarnationis mysterio, sine ulla virilis seminis admixtione, divinae gratia dispositionis, quod erat carnis, assumpsit ex Virgine, atque in illa novissimi Adam immaculati hominis membra formavit.

 

99. Hominem audis, sed supra hominem intellige; quia scriptum est: «Non coques agnum in lacte matris suae» (Exod. XXXIV, 26). Et alibi legis: «Et homo est, et quis agnoscet eum» (Ierem. XVII, 9)? Ergo non debes agnum illum, in quo plenitudo divinitatis corporaliter inhabitat (Coloss. II, 9), conditionis humanae viribus aestimare, et maiestatem incomprehensibilis potestatis degeneris cognitionis infirmitate concludere. Non enim illum perfectae fidei cibum Iacob coxit in lacte, quo Isaac pater ita est delectatus, ut ei praerogativam omnem benedictionis prophetica sobrietate conferret (Gen. XXVII, 25). Et ideo Apostolus scripsit succum lactis tenuis cibum esse doctrinae dicens: «Quia omnis qui alitur lacte, expers est verborum iustitiae; parvulus enim est» (Hebr. V, 13), perfectorum autem est solida esca.

 

100. Et tu ergo, filia, sume stolam illam mulieris pia operatione contextam, quae manus suas aperit pauperi, et lucerna eius non exstinguitur in tota nocte (Prov. XXXI, 19 et seq.): atque indue te, et huiusmodi epulas affer ad patrem, ut dicat: «Quid est quod tam cito invenisti, filia» (Gen. XXVII, 20)? laudans in tenera adhuc aetate prudentiam, piae quoque devotionis affectum. Et dicat tibi: «Accede ad me, filia» (Ibid. 26); odoratusque odorem vestimentorum tuorum benedicat te dicens: «Ecce odor filiae meae, sicut odor agri pleni quem benedixit Dominus; et, det tibi Deus a rore coeli desuper, et ab ubertate terrae abundantiam» (Idid. 27-28). Atque his adiungat: «Qui maledixerit tibi, maledictus erit: et qui benedixerit te, benedictus erit» (Ibid. 29).

 

101. Hac stola indutus Iacob hominem vidit, et ab eo quasi a Domino Deo benedictionem poposcit, et appellavit locum, «Visio Dei» (Gen. XXXII, 31). Hac stola indutus vidit illam stolam Christi, de qua ait: «Lavabit in vino stolam suam» (Gen. XLIX, 11). Et benedixit etiam Ioseph dicens: «Filius meus ampliatus Ioseph, filius meus ampliatus, zelatus filius meus adolescentior, ad me revertere» (Ibid., 22), significans Dominicae resurrectionis insigne. Et addidit: Benedictio patris tui et matris tuae praevaluit super benedictiones montium manentium, et desideria collium aeternorum (Ibid., 26), id est, super regem gratiae.

 

102. Hanc sume stolam, ut induas Christum, atque in eius agnitione renoveris. Indue ergo sicut electa Dei viscera misericordiae, benignitatem, humilitatem, patientiam, modestiam, charitatem, quae est unitatis vinculum (Coloss. III, 12-14); ut nemini quidquam debeas, nisi ut invicem sororem tuam diligas (Rom. XIII, 8): nec gratiae eius invideas, sed quo probatiorem videris, imiteris; ut sit in te pax Christi et gratia, et verbum Dei habitet in corde tuo, atque huius mundi fugias cogitationes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

103. Semel mundo mortua, ne, quaeso, tetigeris (Coloss. II, 20-21), ne attaminaveris quae sunt istius saeculi: sed sempe in psalmis et hymnis et canticis spiritalibus (Coloss. III, 16) abducas te ab huius saeculi conversatione, non homini, sed Deo cantans. Et sicut sancta faciebat Maria (Luc. II, 19), conferas in corde tuo. Quasi bona quoque agnicula rumines in ore tuo praecepta divina, ut dicas et tu: «Exercebor in mirabilibus tuis» (Psal. CXVIII, 27). Nec dormitet aut stillet anima tua prae taedio. Stillicidia enim eiiciunt hominem in tempore hyemali de domo sua: anima autem perfecta non stillat, in qua nulla gravioris est rima peccati; sed manet in domo sua, et inoffensae habitationis novitate laetatur et fruitur. At si aliquid forte nutaverit, dicas: «Confirma me in verbis tuis» (Psal. CXVIII, 28).

97. Podeis ver quantos combates! Todavia não foi ganancioso o conquistador do prémio, para quem foi mais que suficiente a única coroa da virtude celeste. Por isso saí, filhas de Jerusalém, como vos exorta a Escritura divina no Cântico dos Cânticos: «Saí e admirai o rei Salomão com o diadema com que o coroou sua mãe no dia do seu casamento, no dia da festa do seu coração» (Cant. 3, 11). É que «ele fez despertar em si o amor pelas filhas de Jerusalém» (Cant. 3, 10). Isto é: Saí destas angústias e preocupações corporais, saí deste prazer carnal e peregrinai para fora do vosso corpo, para poderdes estar na presença do Senhor, porque os que estão sob o domínio da carne não podem agradar ao seu Senhor. Portanto, é-vos dito que não estejais sob o domínio da carne, mas do espírito (Rom. 8, 8-9), se fordes capazes de compreender o amor daquele verdadedeiro Salomão pacífico, que ele próprio fez despertar em si. Por isso é que ele recebeu a coroa da sua mãe.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

98. Bem-aventurada é a mãe Jerusalém e bem-aventurado é também o ventre de Maria, que coroou um tão grande Senhor[22]. Coroou-o quando o formou; coroou-o, quando o gerou, porque, embora o tenha formado sem nenhuma intervenção sua [porque o Espírito Santo veio sobre a Virgem e por isso é que ele próprio disse: «Os teus olhos viram-me em embrião» (Sl. 138, 16)], todavia, pelo mesmo facto de ela o ter concebido e dado à luz, colocou-lhe na sua cabeça a coroa da eterna piedade, para que pela fé dos crentes Cristo se tornasse a cabeça de todo o homem (1Cor. 11, 3). Portanto a carne de Cristo não foi fabricada[23]. Para que a Virgem Maria o concebesse, pelo inusitado e novo mistério da Incarnação, sem nenhuma intervenção de gérmen masculino, graças ao desígnio divino, Ele tomou da Virgem a sua carne e nela formou os membros do novo Adão, do homem imaculado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

99. Estás a ouvir que Ele é homem, mas entende que Ele está acima do homem, pois está escrito: «Não cozinharás um cordeiro no leite da sua mãe» (Ex. 34, 26). E noutra passagem podes ler: «É homem; e quem o pode conhecer?» (Jer. 17, 9). Portanto não deves avaliar segundo as capacidades da condição humana aquele cordeiro, no qual habita carnalmente a plenitude da divindade (Col. 2, 9), nem encerrar a majestade de um poder incompreensível na debilidade de um conhecimento limitado. Com efeito Jacob cozinhou no leite aquele alimento da fé perfeita, com que o pai Issac de tal maneira se deleitou, que lhe deu com sobriedade profética todo o privilégio da bênção (Gen. 27, 25). Por isso também o Apóstolo escreveu que a bebida do leite é o alimento de doutrina para os débeis, dizendo: «Porque quem se alimenta de leite é incapaz de entender a doutrina da justiça, pois é uma criança» (Heb. 5, 13). Mas a comida sólida é para os perfeitos.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

100. Também tu, filha, recebe aquela túnica[24] tecida pelo piedoso trabalho da mulher que abre as suas mãos ao pobre e a sua lâmpada não se apaga toda a noite (Prov. 31, 18-19). Veste-te com ela e leva ao Pai essa tal comida que o leve a dizer: «Filha, como é que pudeste vir tão depressa?» (Gen. 27, 20), louvando a tua prudência em tão tenra idade e o afecto da tua piedosa devoção. Que ele também te diga: «Filha, aproxima-te de mim» (Gen. 27, 26). E, sentindo o cheiro das tuas vestes, que ele te bendiga, dizendo: «Eis que o odor da minha filha é como o odor de um campo cheio que o Senhor abençoou. Que Deus te conceda o orvalho do céu e a fertilidade da terra» (Gen. 27, 27-28). E que ele acrescente ainda isto: «Maldito seja quem te amaldiçoar, e bendito seja quem te abençoar» (Gen. 27, 29).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

101. Vestido com esta túnica, Jacob viu um homem e pediu-lhe a bênção, como se a pedisse ao Senhor Deus. E chamou àquele lugar «Visão de Deus» (Gen. 32, 31). Vestido com esta veste, ele viu aquela veste de Cristo, acerca da qual se disse: «A sua veste vai ser lavada em vinho» (Gen. 49, 11). Jacob abençoou também José, dizendo: «O meu filho José é vigoroso, o meu filho é vigoroso, o meu filho mais novo e amado; vem para junto de mim» (Gen. 49. 22), prefigurando aqui a gloriosa ressurreição do Senhor. E acrescentou: «As bênçãos de teu pai e da tua mãe prevaleceram sobre as bênçãos das montanhas permanentes e os desejos das colinas eternas» (Gen. 49, 26), isto é, sobre a realeza da graça.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

102. Recebe esta túnica, para te revestires de Cristo e seres renovada no seu conhecimento. Veste, pois, como eleita de Deus, as entranhas de misericórdia, a benignidade, a humildade, a paciência, a modéstia, a caridade, que é o vínculo da perfeição (Col. 3, 12-14), para que a ninguém devas nada, a não ser amares mutuamente a tua irmã (Rom. 13, 8). Nem invejes a sua graça, mas imita-a naquilo em que ela te parecer mais excelente, para que em ti resida a paz de Cristo e habite no teu coração a graça e a palavra de Deus, fugindo das tentações deste mundo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

103. Uma vez morta para o mundo, não toques (Col. 2, 12), eu te peço, nem te entregues às coisas que são deste mundo. Mas com salmos, hinos e cânticos espirituais (Col. 3, 16) afasta-te da relação com este mundo, cantando não para o homem, mas para Deus. E, tal como fazia a Santa Maria (Lc. 2, 19), pondera tudo no teu coração. Como uma boa cordeirinha, rumina na tua boca os preceitos divinos, para poderes dizer também tu: «Meditarei nas tuas maravilhas» (Sl. 118, 27). Que a tua alma não adormeça nem goteje por causa do tédio. Com efeito as goteiras no inverno expulsam o homem da sua casa. Porém a alma perfeita não goteja, nela não há nenhuma fenda de pecado mais grave. Permanece na tua casa e alegra-te, usufruindo da tua casa nova e tranquila. Mas se por acaso alguma coisa vacilar, diz: «Fortalece-me nas tuas palavras» (Sl. 118, 28).

 

Capítulo 17

Oração de acção de graças pela glória da virgindade e de súplica pela oferta e consagração da virgem Ambrósia.

 

104. Nunc ad te, decursis omnibus, Pater gratiae, vota converto, cuius pietati innumerabiles gratias agimus, quod in virginibus sacris angelorum vitam videmus in terris, quam in paradiso quondam amiseramus. Quid enim vel ad imitanda virginum studia, confirmandamque virtutem, vel ad concelebrandam virginitatis gloriam plus conferre potuisti, quam ut Deus ex virgine nasceretur? Amplius nobis profuit culpa, quam nocuit: in quo redemptio quidem nostra divinum munus invenit.

 

105. Sed ipse quoque unigenitus Filius tuus venturus in terras suscipere quod amissum est, puriorem carnis suae generationem reperire non potuit, quam ut habitationi propriae coelestis aulam virginis dedicaret; in qua esset et immaculatae castitatis sacrarium, et Dei templum.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

106. Quid autem illud attexam, quod divino tuo munere cum sanctis Moyse et Aaron (Exod. XV, 20) virgo Maria pedes per fluctus duxit Hebraeorum exercitum? Relinquo vetera, privata non quaero: satis est ista nobilitas familiae virginali.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

107. Te quaeso ut tuearis hanc famulam tuam, quae tibi servire, tibi animam suam, tibi integritatis suae studium dicare praesumpsit. Quam sacerdotali munere offero, affectu patrio commendo; ut propitius et praesul conferas ei gratiam, quo coelestium thalamorum immorantem adytis Sponsum excutiat, mereatur videre, introducatur in cubiculum Dei sui regis: mereatur audire dicentem sibi: «Ades huc a Libano, Sponsa, ades huc a Libano; transibis et pertransibis a principio fidei» (Cant. IV, 8); ut transeat saeculum, ad illa aeterna pertranseat.

 

108. Intende igitur, Pater, in tuum munus, cui sanctificando nullius consilium quaesisti: sed illi sine ullo petitore atque arbitro tantam contulisti gratiam, quantam ante oracula divina credere nemo potuisset, ut in suo utero Deum virgo portaret. Cuius praerogativa muneris provocata crebrescunt studia virginitatis, et sacrae integritatis exempla. Quibus haec quoque famula tua ad huiusmodi virtutis gratiam lacessita, tuis assistat altaribus, non rutilanti caesarie flavum deferens crinem flammeo nuptiali dicatum: sed illum crinem quo evangelica illa mulier sancta Maria pedes Christi sedula pietate detersit, et domum totam effuso implevit unguento (Ioan. XII, 3), sacro offerens velamine consecrandum.

 

109. Adest puella, quam non nuptiarum festa, non praemia, non onerati pondus uteri, votivo nupturis dolore sollicitent: sed quae immaculatos sibi fidei partus et pietatis exposcat; ut in utero accipiat de Spiritu sancto, et spiritum salutis Deo feta parturiat. Sed ut ista procedere possit meritorum gratia, tu, Deus Pater omnipotens, suffragia commendationis adiunge; non enim solitaria dos pudoris est. Succingat sacrae virginitatis crinem modestia, sobrietas, continentia; ut virtutum accincta comitatu, purpureo Dominici cruoris redimita velamine, mortificationem Domini Iesu in sua carne circumferat; haec sunt enim meliora velamina, quae sunt indumenta virtutum, quibus culpa obtexitur, innocentia revelatur.

 

110. His igitur famulam tuam indue vestimentis, quae in omni tempore munda sint; mundum enim manet, quidquid nulla interveniens culpa fuscaverit, ut ei iure dicatur: Quoniam placuerunt Deo facta tua (Eccl. IX, 7). In omni tempore sint vestimenta tua candida, et oleum in capite non desit, quo faces suas mysticas possit accendere; ut cum venerit Sponsus, inter illas sapientes virgines (Matth. XXV, 10) coelesti thalamo digna numeretur, quae devotionis ac fidei suae, gravitatisque lumine munus sacrae professionis illuminet.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

111. Tuere igitur ancillam tuam, Pater charitatis et gloriae, ut quasi in horto clauso et fonte signato teneat claustra pudicitiae, signacula veritatis. Agrum suum colere noverit quem colebat sanctus Iacob; et sexagesimos ex eo centesimosque fructus capesset. In huius virtutibus et fortitudinibus agri suscites in ea gratiam, et resuscites charitatem. Inveniat quem dilexit, teneat eum, nec dimittat eum (Cant.b3, 4); donec bona illa vulnera charitatis excipiat, quae osculis praeferuntur. Semper parata noctibus et diebus toto spiritu mentis invigilet,ne umquam Verbum eam inveniat dormientem. Et quoniam vult se dilectus eius saepius quaeri, ut exploret affectum; recurrentem sequatur, exeat fides et anima eius in verbum tuum peregrinetur a corpore, ut adsit Deo: vigilet cor eius, caro dormiat, ne male incipiat vigilare peccatis. 

 

112. Tu, Domine, adiunge alios sacrae virginitatis ornatus, adiunge sedulos pios cultus; ut noverit possidere vas suum, noverit humiliari: dilectionem teneat, veritatis murum, pudoris septum. Non pineae velamen eius, non vincant cupressi, pudicitiam eius non turtures, simplicitatem eius non vincant columbae. Sit in corde simplicitas, in verbis modus, erga omnes pudor, pietas erga propinquos, circa egenos et pauperes misericordia: quod bonum est teneat, ab omni specie abstineat mala: veniat super eam benedictio morituri, et os viduae benedicat eam (Iob XXIX, 13).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

113. Pone ut signaculum verbum tuum in corde eius, ut signaculum in brachio eius (Cant. VIII, 6); ut in omnibus sensibus et operibus eius Christus eluceat, Christum intendat, Christum loquatur. Aqua multa eius non possit exstinguere charitatem (Cant. VIII, 7), nec persecutionis gladius, nec periculum: sed confirmata in omni opere bono atque verbo, gloriam tuam induat, et in tua gratia conversetur in hoc mundo. Sanctifices eam in veritate (Ioan. XVII, 17), in virtute confirmes, in charitate connectas, atque ad illam pudicitiae et integritatis coelestem gloriam, coronam illibatam, immaculatamque divino tuo favore perducas; ut illic Agni sequatur vestigia, et in meridiano pascat, in meridiano maneat, nec in grege sodalium incedat (Cant. I, 7): sed agnis tui admixta, sine offensione versetur comes virginum, pedissequa Mariarum.

 

114. Egredere itaque tu, Domine Iesu, in die sponsalium tuorum, suscipe iamdudum devotam tibi spiritu, nunc etiam professione; imple agnitione voluntatis tuae; assume ab initio in salutem, in sanctificatione spiritus et fide veritatis, ut dicat famula tua: Tenuisti manum dexteram meam, et in voluntate tua deduxisti me, et in gloria assumpsisti me (Psal. LXXII, 23, 24). Aperi manum tuam, et imple animam eius benedictione (Psal. CXLIV, 16); ut salvam facias sperantem in te (Psal. LXXXV, 2), et fiat vas in honorem sanctificatum, utile Domino, ad omne opus bonum probatum: per illam aeternabilem crucem, per illam venerabilem gloriam Trinitatis, cui est honor, gloria, perpetuitas, Patri Deo, et Filio, et Spiritui sancto, a saeculis, et nunc, et semper, et in omnia saecula saeculorum, Amen.

104. Agora, expostas todas estas coisas, dirijo as minhas preces para vós, ó Pai da graça, dando-vos imensas graças pela vossa piedade, porque na pessoa das virgens consagradas nós vemos a vida dos anjos, que outrora perdemos no paraíso. Que mais poderíeis vós ter feito, para nos levar a imitar o empenho das virgens e fortalecer a sua virtude, ou para nos levar a celebrar a glória da virgindade, do que um Deus nascer de uma virgem? A culpa beneficiou-nos mais, do que nos prejudicou, porquanto a nossa redenção nos proporcionou um dom divino[25].

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

105. Mas o vosso Filho unigénito, havendo de vir ao mundo para recuperar o que se tinha perdido, não podia encontrar uma origem mais pura para a sua carne, do que dedicar para sua própria habitação a mansão de uma virgem celeste, que fosse não só o sacrário da castidade imaculada, mas também o templo de Deus.

 

106. Será que é preciso eu de acrescentar ainda o facto de, graças ao vosso dom divino, aquela outra virgem chamada Maria, com os santos Moisés e Aarão (Ex. 15, 20), ter conduzido o exército dos Hebreus pelas ondas do mar? Deixo de lado as coisas antigas, não procuro o que é privado. Esta nobreza é suficiente para a família das virgens[26].

 

107. Peço-vos que protejais esta vossa serva, que ousou servir-vos e consagrar-vos a sua alma e o empenho da sua honestidade. Pelo meu múnus sacerdotal vo-la ofereço e pelo afecto paternal vo-la entrego, para que lhe concedais propício e protector a graça de despertar o Esposo que mora nos aposentos dos tálamos celestes, de merecer vê-lo e de ser introduzida na habitação de Deus, seu Rei. Que ela mereça ouvir aquele que lhe diz: «Vem do Líbano, esposa, vem do Líbano, aproxima-te. Tu passarás e atravessarás a partir do princípio da fé» (Cant. 4, 8). Que ela passe por este mundo e vá para aquelas moradas eternas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

108. Atendei, pois, ó Pai, ao vosso dom, para cuja santificação não procurastes conselho de ninguém. Mas, sem que ninguém vo-lo pedisse nem aconselhasse, vós concedestes-lhe uma graça tão grande que, antes dos oráculos divinos, ninguém teria podido acreditar que uma virgem trouxesse no seu ventre o próprio Deus. Provocado pelo privilégio desse dom, cresceu o empenho da virgindade e o exemplo da sagrada pureza. Que com isto esta vossa serva, atraída para a graça dessa virtude, se apresente diante dos vossos altares, não levando uma esbelta cabeleira loira consagrada pelo véu nupcial, mas levando aqueles cabelos com que aquela santa mulher do Evangelho, chamada Maria, enxugou com profunda piedade os pés de Cristo e encheu toda a casa com o perfume derrado (Jo. 12, 3), oferecendo-os para serem consagrados com o sagrado véu.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

109. Está aqui uma donzela, que não é atraída nem pela festa das núpcias, nem pelos presentes, nem pelo peso de um ventre carregado, nem pela dor que desejam as que vão casar, mas que deseja para si o parto imaculado da fé e da piedade, em ordem a poder receber no seu seio o dom do Espírito Santo e, fecundada por Deus, dar à luz o espírito da salvação. Mas para que ela possa progredir nesta graça dos seus méritos, vós, ó Deus Pai omnipotente, acrescentai-lhe os outros auxílios da perfeição. Com efeito o dom do pudor não vive isolado. Que a modéstia da sagrada virgindade, a sobriedade e a continência lhe cinjam o cabelo, para que, acompanhada pelo séquito destas virtudes, coroada com o véu purpúreo do sangue do Senhor, leve na sua carne a morte do Senhor Jesus. Estes são, pois, os melhores véus de que se revestem as virtudes, com os quais se encobre a culpa e se revela a inocência.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

110. Vesti, portanto, esta vossa serva, com estas vestes, que sempre devem estar limpas. Com efeito tudo aquilo que não for obscurecido por nenhuma culpa permanecerá limpo, de modo que com razão lhe possa ser dito: «Porque as tuas acções agradaram a Deus» (Eclo. 9, 7). Que as tuas vestes sejam sempre cândidas. Que não deixe de haver azeite na sua cabeça, com o qual ela possa acender as suas lâmpadas místicas, a fim de que, quando vier o Esposo, ela seja contada entre as virgens prudentes (Mt. 25, 10), digna do tálamo celeste. Que ela faça brilhar o dom da profissão religiosa com a luz da sua devoção, da sua fé e da sua seriedade.

 

111. Protegei, pois, a vossa serva, ó Pai da caridade e da glória, para que, como num jardim fechado e numa fonte selada, guarde o ferrolho da pureza e o selo da verdade. Que ela saiba cultivar o seu campo, como o santo Jacob cultivava o seu e que dele possa receber sessenta e cem por um. Com base nas virtualidades e potencialidades deste campo, suscitai nela a graça e despertai nela a caridade. Que ela encontre aquele que a amou, fique com ele e não o deixe (Cant. 3, 4), até receber aquelas feridas boas do amor, que são preferíveis aos beijos. Que sempre preparada ela vigie, noite e dia, com toda a sua alma, para que o Verbo nunca a encontre a dormir. E, porque o seu amado quer ser sempre procurado, para que ela lhe prove o seu amor, que ela o siga quando ele voltar, que a sua fé e a sua alma vá ao encontro da vossa palavra, que ela saia do seu corpo, para se apresentar diante de Deus. Que o seu coração vigie e que a sua carne adormeça, não suceda que comece a despertar para os pecados[27].

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

112. Vós, Senhor, acrescentai-lhe os outros atributos da sagrada virgindade, acrescentai-lhe o estilo de vida diligente e piedoso, para que saiba ser senhora do seu vaso corporal, e para que saiba humilhar-se. Que possua amor, que é o muro da verdade e a sebe do pudor. Que os prinheiros e os ciprestes não ultrapassem o seu véu[28], que as rolas não superem a sua pureza e as pombas não superem a sua simplicidade. Haja no seu coração simplicidade, nas suas palavras moderação, pudor para com todos, piedade para com os que lhe estão próximos, misericórdia para com os indigentes e pobres. Possua o que é bom e abstenha-se de toda a espécie de males. Venha sobre ela a bênção do moribundo e a boca da viúva a bendiga (Job 29, 13).

 

113. Gravai como um selo a vossa palavra no seu coração, e como um selo no seu braço (Cant. 8, 6), para que em todos os seus pensamentos e acções resplandeça Cristo, revele Cristo e anuncie Cristo. Que as suas águas caudalosas não possam extinguir o amor (Cant. 8, 7), nem mesmo a espada da perseguição ou o perigo. Mas que ela, firme em toda a obra e palavra boa, se revista da vossa glória e que neste mundo viva na vossa graça. Santificai-a na verdade (Jo. 17, 17), confirmai-a na virtude, prendei-a na caridade e conduzi-a com o vosso divino favor àquela glória celeste da pureza e da honestidade, que é a coroa pura e imaculada, para que ela siga até ali os passos do Cordeiro, que ela paste no meio-dia, que fique no meio-dia e não vá atrás dos rebanhos dos companheiros (Cant. 1, 7). Que ela, misturada com os cordeiros do vosso Cordeiro, se encontre sem incómodo como companheira das outras virgens e como fâmula daquelas Marias.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

114. Saí vós, ó Senhor Jesus, no dia dos vossos esponsais, e tomai aquela que desde há muito vos foi consagrada em espírito e que desde agora o é com a profissão religiosa. Enchei-a do conhecimento da vossa vontade. Tomai-a desde o início para a salvação, na santificação do espírito e com a fé da verdade, para que a vossa serva possa dizer: «Tu me conduziste pela mão; guiaste-me com o teu conselho e me recebeste na tua glória» (Sl. 72, 23-24). Abri a vossa mão e enchei de bênçãos a sua alma (Sl. 144, 16), para salvardes aquela que esperou em vós (Sl. 85, 2). Que ela se torne um vaso honrado e santificado, útil ao Senhor, aprovado para toda a boa obra. Por aquela eterna cruz, por aquela venerável glória da Trindade, Pai e Filho e Espírito Santo, a quem seja dada a honra, a glória e a perpetuidade, pelos séculos, agora e sempre e por todos os séculos dos séculos. Amen.

 

 

 

 

 

 

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[1] Segundo alguns autores, Eusébio foi Bispo de Bolonha, que esteve presente no Concílio de Aquileia no ano de 381, e é venerado como Santo. Segundo outros autores era um cidadão distinto e rico de Bolonha. Tinha um filho chamado Faustino, que era pai de muitos filhos. Eusébio, velho amigo de Santo Ambrósio, envia os seus netos a residirem na casa do Bispo de Milão, para que este vigiasse a educação deles. Entre eles havia uma menina chamada Ambrósia, que manifestou vontade de consagrar-se a Deus. Ambrósio, que a considera como filha, oferece-a a Deus e, quando lhe dá o véu, pronuncia um discurso que serviu de base para o presente Tratado que dirige a Eusébio.

[2] Santo Ambrósio escreveu duas cartas a Eusébio, a Carta 54 e 55. Na Carta 55, logo na primeira frase, encontramos o sentido da palavra «pignus» [penhor] com que Santo Ambrósio identifica aqui a virgem Ambrósia:

Faustinus uterque tibi redditus est, nobis utrumque Ambrosium pignus resedit.

Foram-te devolvidos os dois Faustinos e ficam comigo, como penhor da nossa amizade, os dois Ambrósios.

Estas palavras revelam que Eusébio, naquela data, tinha quatro netos na casa de Santo Ambrósio e que este lhe envia de volta o Faustino e a Faustina, ao passo que o Ambrósio e a Ambrósia continuam na sua casa, como penhor [«pignus»] da amizade que unia os dois velhos amigos, Eusébio e o Bispo de Milão.

[3] Nesse tempo, as virgens permaneciam na casa de seus pais e não eram ainda, pelo menos em Itália, fechadas em Mosteiros.

[4] O famoso teólogo medieval Ricardo de São Vitor, a propósito da simbologia do sol, da lua e das estrelas, interpretada pelos Padres da Igreja, escrevia assim no seu Liber Exceptionum I, Parte II, cap. V:

Solent doctores sancti per solem accipere Cristum, per lunam Ecclesiam, per singulas stellas, singulos fideles. Per solem Cristum, quia sicut sol perfectus est in se nec mutatur, sic Christus, quia immensus est, non potest augeri, et quia aeternus est, non potest mutari. Per lunam designant Ecclesiam, quia sicut luna per diurna incrementa ad plenitudinem ducitur, sic sanctae corpus Ecclesiae membris suis per gratiam sibi succedentem appositis consummatur, et sicut luna a sole suscipit lucem, sic sancta Ecclesia a Christo suscipit iustificationem. Per stellas ideo designantur fideles, quia sunt et ispsi luminaria coeli, coelo affixi, sicut Paulus de se sibique similibus luminaribus dixit: “Nostra autem conversatio in coelis est”. Et iterum: “Lucetis sicut clara luminaria in mundo”. Sol igitur, Christus; luna, Ecclesia; stelae, fideles.

Os santos doutores costumam interpretar o sol como Cristo, a lua como a Igreja, e cada uma das estrelas como cada um dos fiéis. O sol como Cristo, porque, tal como o sol é perfeito em si mesmo e não se muda, assim Cristo, sendo imenso, não pode ser aumentado e, sendo eterno, não pode mudar-se. Designam a lua como a Igreja, porque, tal como a lua atinge a sua plenitude graças à sucessão dos dias, assim também o corpo da Santa Igreja é consumado, depois de acrescentados os seus membros por meio da graça que a inunda; e tal como a lua recebe do sol a luz, assim também a Santa Igreja recebe de Cristo a justificação. Os fiéis são designados como estrelas, porque também eles são luzeiros do céu, e no céu estão fixados, tal como Paulo disse de si mesmo e dos que são como ele: “A mossa morada está nos céus” (Filip. 3, 20), E ainda: “Brilhareis como luzeiros neste mundo” (Filip. 2, 15). Portanto o sol é Cristo, a lua é a Igreja e as estrelas são os fiéis.

 

[5] Com Santo Ambrósio a virgindade cristã, como ideal de vida, é um dos eixos pastorais e um dos grandes protagonistas do ambiente eclesial da diocese de Milão. Graças à sua pregação, aos seus escritos e o seu próprio exemplo, a pouco e pouco foi criando um movimento de virgindade que rapidamente transcendeu os limites da diocese de Milão. Para além do presente tratado, Santo Ambrósio escreveu o De virginibus, De viduis, De virginitade e Exhortatio virginitatis. Chegaram até nós também muitas Homilias e Cartas em que o santo bispo aborda profusamente este tema.

[6] D’ALVERNY, Marie-Terese, “Comment les théologiens et les philosophes voient la femme”, in Cahiers de Civilisation Médiévale, Université de Poitiers, Poitiers,  Année 1977/ Volume 20/ Numéro 78, pp. 105-129.

[7] Cf. POWER, Kim, “The Rehabilitation of Eve in the De institutione uirginis of Ambrose of Milan”, in Religion in the Ancient World: New Themes and Approaches, ed. M. Dillon, Amsterdam. Hakkert, 1998, pp. 367-382.

[8] Sobre a vocação e a dignidade da mulher no pensamento de Santo Ambrósio Cf. VERA ZORRILLA, Fernando, Los «exempla» femeninos en San Ambrosio, Tese Doutoral apresentada na Universidade de Navarra, 2002.

[9] Sempre com a preocupação de suavizar a responsabilidade da mulher no pecado original, referindo-se a Maria Madalena, Santo Ambrósio diz o seguinte na Expositio Evangelii secundum Lucam, X, 156 :

Sicut in principio mulier auctor cuplae fuit, vir exsecutor erroris: ita nunc quae mortem viro prior gustaverat, resurrectionem prior vidit, culpae ordinae, et remedio prior. Et ne perpetui reatus apud viros opprobrium sustineret: quae culpam viro transfuderat, transfudit et gratiam, veterisque lapsus compensat aerumnam resurrectionis indicio. Per os mulieris mors ante processerat, per os mulieris vita reparatur.

Tal como no princípio a mulher foi a provocadora do pecado e o homem foi o executor do erro, assim também agora aquela que tinha sido a primeira a fazer com que o homem provasse a morte, foi a primeira a ver a ressurreição. Foi a primeira na ordem da culpa e foi a primeira no remédio. E para não ter de passar diante dos homens pela vergonha de uma culpabilidade permanente, ela que transmitiu o pecado ao homem, transmitiu-lhe também a graça, compensando a ruína da velha queda com o anúncio da ressurreição. Pela boca da mulher tinha vindo anteriormente a morte, pela boca da mulher é restaurada a vida.

 

[10] A propósito desta etimologia do nome de Maria, proposta por Santo Ambrósio, o teológo benedito, VIRGILIO SEDLMAYR, diz o seguinte na sua “Teologia Mariana”, Parte I, Questão 12, Artigo III, Nº 794:

Nempe MARIAH includit ‘IAH’, quod est nomen Dei, et ‘MAR’ quod ad radicem ‘HARAH’ recovatum significat generare, ut idem sit, ac Deus ex me generatur, seu Deus ex genere meo; sic ergo ipsum sacratissimum Nomen praessagium est Maternitatis Dei, et designat sublimissimum officium, ad quod Deipara Virgo fui electa, ut nempe supremum omnium Dominum generaret, et hic esset ex genere Mariae, id est ex eius stirpe, et prosapia, et ex eius carne tanquam homo factus, ab ea vere conceptus, et natus, «quod ex te nascetur sanctum, vocabitur Filius Dei».

Na verdade o nome MARIA é composto por ‘IAH’, que é o nome de Deus, e por ‘MAR’, que, remetido à raiz ‘HARAH’, significa gerar, para vir a ser o mesmo que ‘Deus é gerado de mim’, ou ‘Deus é da minha descendência’. Por conseguinte este sacratíssimo nome é um presságio da Maternidade de Deus e designa a sublimíssima missão para a qual a Virgem Mãe de Deus foi escolhida, a saber: que gerasse o Senhor supremo de todas as coisas e que Ele fosse da descendência de Maria, isto é, da sua estirpe e linhagem; e que da sua carne fosse feito homem, sendo dela verdadeiramente concebido e nascido, «porque o santo que vai nascer de ti será chamado Filho de Deus».

 

[11] Bonoso, bispo de Sárdica, na Macedónia, era o chefe da seita dos que atacavam a virgindade perpétua de Maria. Foi condenado no concílio de Cápua, celebrado no ano 391. Daqui se pressupõe que o presente tratado terá sido escrito por volta dessa data. Santo Ambrósio propõe-se aqui refutar uma a uma as objecções que o herege Bonoso levantava à virgindade perpétua de Maria.

 

[12] É um argumento excelente de Santo Ambrósio: a referida passagem do Evangelho não diz que José teve relações carnais com a Virgem depois do nascimento de Cristo, mas somente pretende afirmar que não as teve antes. Sendo assim, argumenta Santo Ambrósio, o costume da Escritura, ao tratar de um assunto, é fazer conhecer o ponto principal que se propôs tratar, que neste caso é: a Virgem concebeu Jesus por obra do Espírito Santo. Sendo este o objectivo principal, o Evangelho não pretende deter-se numa questão episódica, isto é, tratar do assunto da relação carnal de Maria e José após o nascimento de Jesus.

[13] Sâo Jerónimo também usara o mesmo argumento no De Perpetua virginitate B. Mariae, Adv. Helvidium, Livro I, 4:

Quod autem in somnis dicitur ad Ioseph: “Ne timeas accipere Mariam uxorem tuam. Et rursum: “Exsurgens autem Ioseph a somno, fecit sicut praecepit ei Angelus Domini, et accepit uxorem suam”, nullum movere debet, quasi ex eo quod uxor est appellata, sponsa esse desierit: cum hanc esse Scripturae divinae consuetudinem noverimus, ut sponsas appellet uxores

Aquilo que durante o sono é dito a José, a saber: “Não temas receber Maria tua esposa”; e ainda: “José, despertando do sono, fez como o Anjo do Senhor lhe tinha ordenado e recebeu a sua esposa”; não deve perturbar ninguém, como se ela deixasse de ser desposada pelo facto de ter sido chamada esposa, quando nós sabemos que este é o costume da divina Escritura: chamar esposas às desposadas.

 

[14] No Comentário ao Evangelho de Lucas, Livro II, 1, Santo Ambrósio já tinha dito o seguinte:

Maluit autem Dominus aliquos de suo ortu quam de matris pudore dubitare; sciebat enim tenerem esse virginis verecundiam, et lubricam famam pudoris: nec putavit ortus sui fidem matris iniuriis adstruendam. Servatur itaque Sanctae Mariae sicut pudore integra, ita inviolabilis opinione virginitas; oportet enim sanctos et ab his testimonium habere qui foris sunt: nec decuit sinistra virginibus opinione viventibus velamen excusationis relinquí, quod infamata mater quoque Domini videretur

Preferiu o Senhor que alguns duvidassem do seu nascimento do que da honra da sua mãe. Com efeito Ele sabia como é delicado o pudor de uma virgem e como é ténue a fama da honestidade. Por isso considerou que a aceitação do seu nascimento não havia de ser dada à custa de injúrias contra a sua mãe. Assim, da mesma forma que a virgindade de Santa Maria é mantida no seu pudor, também é mantida inviolável na opinião pública. Na verdade, é necessário que os santos também sejam reconhecidos publicamente. Nem covinha que se deixasse o véu da desculpa às virgens que vivem com uma fama duvidosa, pelo facto de parecer que a mãe do Senhor também tinha tido má fama.

 

[15] Santo Ambrósio faz aqui referência a uma tradição proveniente do século II, que, pelas informações dadas por Origenes, terá tido origem no Proto-evangelho de Tiago e no Evangelho segundo Pedro. Essa tradição defendia que os irmãos de Jesus são filhos de um primeiro casamento de José. Origenes parece aceitá-la no Commentarium in Matthaeum, X, 17:

Fratres autem Iesu, filios esse Iosephi ex priore coniuge, quam ipse ante Mariam duxerit, affirmant nonnulli, ad id scilicet ducti traditione Evangelii quod secundum Petrum inscribitur, vel libri Iacobi. Qui vero id dicunt, Mariae dignitatem in virginitate ad finem usque volunt conservaere.

Alguns afirmam que os irmãos de Jesus são filhos de José, de um primeiro casamento que ele teve antes de Maria, e fazem-no com base numa tradição do Evangelho segundo Pedro, ou do livro de Tiago. Os que porém dizem isso, desejam preservar a honra de Maria na sua virgindade até ao fim.

Epifânio de Salamina argumenta em favor da virgindade perpétua de Maria com base nesta tradição, no Panarion, 28, 7:

Alioqui cum in cruce penderet, non sancto Ioanni, qui et ipse virginitatem servavit, matrem commendaret suam, cum ita locutus est: ‘Ecce mater tua’. Et alloquens: ‘Ecce filiuus tuus’. Hanc enim vel cognatis suis committere oportuit, vel Iosephi liberis, si quos ex ipsa sustulerat, puta Iacobo, Iose, Iudae, Simeoni, quos Isephus alia ex uxore genuerat.

Se não fosse assim, estando na cruz, não entregaria a sua mãe a São João, o qual também guardou a virgindade, ao dizer-lhe: ‘Eis a tua mãe’. E dizendo a ela: ‘Eis o teu filho’. Ele Podia entregá-la aos seus parentes ou aos filhos de José, se estes fossem também filhos dela, refiro-me a Tiago, José, Judas e Simão, que José tinha gerado de uma outra mulher.

Eusébio de Cesareia também a refere na sua História Eclesiástica, Livro II, c. 1:

Tunc etiam Iacobum, qui frater Domini dicebatur, eo quod esset Iosephi filius.

Também Tiago, que era chamado irmão do Senhor, por ser filho de José.

Hilário de Poitiers no In Evangelium Matthei Commentarius, I, 4:

Plures Dominum nostrum frares habuisse sit traditum. Qui si Mariae filli fuissent, et non potius Iosephi ex priore coniugio suscepti; nunquam in tempore passionais Ioanni apostolo transcripta esset in matrem.

Foi-nos transmitido que nosso Senhor teve muitos irmãos. Se eles fossem filhos de Maria e não apenas de José, tidos de um outro casamento, nunca durante a paixão ela teria sido entregue ao Apóstolo João como mãe.

 

[16] Santo Ambrósio defende que não houve verdadeiro matrimónio entre José e Maria, pela falta da cópula conjugal, classificando o seu matrimónio de «petextum propter mysterium» (Expositio Evangelii secundum Lucam, Livro X, 133):

Neque enim abrogatur uxor marito, cum scriptum sit: quod Deus coniunxit, homo non separet; sed quae propter mysterium coniugium praetexuit, completis mysteriis iam coniugio non egebat

Com efeito não se retira a esposa ao marido, tendo sido escrito: o que Deus uniu não o separe o homem; mas aquela que por causa do mistério encontrou um pretexto para a união conjugal, cumpridos os mistérios, já não precisava dessa união.

Com a morte do Filho, o pacto conjugal entre Maria e José (Ambrósio supõe que José ainda é vivo, quando Jesus morreu), deixa de ter o seu fim específico e, se não houve verdadeiro matrimónio, também não podia haver divórcio (Expositio Evangelii secundum Lucam, Livro II, 4):

Utique si convenisset, nunquam virum proprium reliquisset, nec vir eam iustus passus esset a se discedere. Quomodo autem Dominus divortium praecipisset, cum ipsius sit sententia, quia nemo dimittere debet uxorem, excepta causa fornicationis?

Realmente se ela estivesse com ele, nunca teria deixado o próprio marido, nem um homem justo teria suportado que ela se apartasse de si. Como é que o Senhor iria mandar fazer um divórcio, quando a sua sentença é que ninguém deve deixar a esposa, excepto em caso de fornicação?

 

[17] Para Santo Ambrósio, Maria, pela sua fé pura, fica literalmente colada a seu Filho e à missão dele, na realização da sua maternidade de corpo e de Espírito, desde a incarnação até à cruz.

[18] Santo Ambrósio vê em Maria uma votade explícita de se associar ao mistério Redentor de seu Filho. A tradição posteiror irá reconhecer em Maria essa associação ao Sacrifício de Cristo mediante uma imolação espiritual, que faz dela a Corredentora.

[19] O simbolismo do óleo, como sinal de fortaleza, é retirado dos jogos de luta no circo, onde os atletas se untavam com óleo para poder defender-se melhor do adversário. No seu Comentário ao Evangelho de Lucas (Livro II, 29), a propósito de João Baptista, Santo Ambrósio dizia:

Mansit autem Maria cum illa mensibus tribus. Ungebatur itaque, et quasi bonus athleta exercebatur in utero matris propheta; amplissimo enim virtus eius cetamini parabatur.

Maria permaneceu com ela (Isabel) três meses. O profeta era ungido e, como um bom atleta, exercitava-se no ventre materno; assim a sua valentia se preparava para um enorme combate.

 

[20] Em Santo Ambrósio é muito clara a dimensão eclesiológica da figura de Maria: há uma identidade perfeita entre Maria e a Igreja. Tanto Maria como a Igreja exprimem o único mistério da Salvação através da maternidade virginal: como a Mãe de Cristo, a Igreja é esposa mas virgem, ela concebe-nos virginalmente pelo Espírito Santo e dá-nos à luz sem dores de parto (cf. Lumen Gentium, 63).

Bene desponsata, sed virgo; quia est Ecclesiae typus, quae est immaculata, sed nupta

Casada, mas virgem, porque ela é o tipo da Igreja, que é imaculada, mas casada.

          (Expositio Evangelii secundum Lucam, Livro II, 7)

[21] No sentido em que Cristo triunfa na pessoa dos seus mártires.

[22] Admirável esta comparação que Santo Ambrósio faz da «mãe Jerusalém», mãe de todos os povos, com o bem-aventurado ventre de Maria, mãe dos crentes.

[23] O termo latino «inoperata» é aqui utilizado no sentido de mostrar que na incarnação de Cristo não houve intervenção humana.

[24] O nome «stola» tem vários significados, mas ordinariamente refere-se à veste talar feminina, por isso, a maioria dos escritores identificam «stola» com «regilla» ou «lena», vocábulos que correspondem ao nosso conceito de túnica para as mulheres. A veste masculina era era designada com o nome de «vestis», «vestimentum» ou «tunica».

[25] Pode ver-se aqui um eco da famosa exclamação «O Felix culpa» do hino pascal «Exultet». O Bispo de Mende, Guillaume Durand (século XIII), citado por Bernard Capelle (1884-1961), Abade da Abadia Beneditina de Mont-César em Louvain, pensa que o autor desta expressão seria Santo Ambrósio. «A expressão O Felix culpa corresponde a um pensamento que lhe é familiar... O autor do Exultet é tão parecido com Ambrósio que até parece seu irmão!» (Dictionnaire d’Archéologie chrétienne et de Liturgie, dir. Dom fernand Cabrol e Dom Henri Leclerc, Paris, 1922 «Artigo Pâques»).

[26] Parce que aqui Santo Ambrósio faz referência ao gosto que os nobres romanos dedicavam às genealogias, verdadeiras ou inventadas, com que as famílias patrícias gostavam de se enfatuar.

[27] No Hino de vésperas de sua autoria, «Deus Creator omnium», Santo Ambrósio exprime a mesma ideia de maneira poética:

Dormire mentem ne sinas,

Dormire culpa noverit.

Não deixeis dormir a alma,

Mas que o pecado aprenda a dormir.

                                                        LH.

[28] Santo Ambrósio defende que o véu das virgens deve ser comprido, dizendo hiperbolicamente que deve ser superior ao tamanho dos pinheiros e ciprestes. Nisto concorda com Tertuliano que dizia que o véu devia ser longo como os cabelos soltos:

Quantum resoluti crines occupare possunt, tanta est velaminis regio; ut cervices quoque ambiantur.

A extensão do véu há-de ser tanta, quanto o espaço que os os cabelos soltos possam ocupar, para que também os ombros sejam abrangidos.

                    (Tertuliano, De Virginibus Velandis, 17, 3).

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