Quinta-feira, Abril 25, 2024

ECLESIOLOGIA PATRÍSTICA (PARTE I)

ECLESIOLOGIA PATRÍSTICA

I. Características gerais da eclesiologia patrística

Nos escritos do NT, a Igreja (εκκλησια) não é tratada como tema teológico, mas como um horizonte ou âmbito vital da fé na ressurreição de Jesus.

Esse âmbito vital da fé, fundado na pregação do próprio Jesus e encaminhado depois pelo dom de seu Espírito, se forma mediante o anúncio (κηριγμα) missionário em Israel e para todos os povos. Por isso, no NT a Igreja aparece em relação com diversos temas centrais da pregação apostólica: com a condição do discípulo e com o seguimento de Cristo para chegar ao reio de Deus (Sinóticos), ao mostrar a continuidade e a diferença em relação a Israel (Sinóticos, Atos, cartas paulinas, Primeira Carta de Pedro, Carta aos Hebreus), na obrigatoriedade normativa da fé na pregação apostólica e na tradição (Atos, cartas paulinas, cartas pastorais), na construção da unidade operada pelo Espírito mediante o “estar com Cristo”, isto é, Igreja como “corpo de Cristo” ou como “esposa de Cristo” (cartas paulinas aos Efésios e aos Colossenses), na esperança que as comunidades perseguidas têm na parusia (cartas paulinas, Apocalipse). Por isso a Igreja, em continuidade com o qahal hebreu, considera a si mesma como comunidade dos crentes em Cristo, provenientes de todos os povos da terra. O termo εκκλησια no NT indica não só a pequena comunidade, mas também a comunidade de todos os crentes que formam a Igreja universal.

1. UMA ECLESIOLOGIA TRANSCENDENTAL PARA A IGREJA HISTÓRICA E INSTITUCIONAL.

A reflexão teológica sobre a natureza da Igreja foi incrementada logo devido ao desenvolvimento da cristologia primitiva. Ela apresenta Jesus de Nazaré, em um amplo horizonte cosmológico e cronológico, como o Filho preexistente de Deus, como o Senhor que virá novamente e como cabeça da criação; contemporaneamente a Igreja é apresentada, ao mesmo tempo nas cartas paulinas e deuteropaulinas (Efésios e Colossenses), como o Christus prolongatus, que continua a viver. Surge assim uma eclesiologia transcendente, em condições de conferir às comunidades concretas uma relevância importante que as associações cultuais do paganismo não se atribuíam nunca no explicitar a própria autoconsciência e atividade. Essa importante eclesiologia, surgida já no cristianismo primitivo, abrange três aspectos: a) preexistência da Igreja; b) o fim escatológico da Igreja no reino de Deus; c) aspectos cosmológicos.

a. Preexistência – A Secunda Clementis 14,2, com a ajuda da cristologia preexistente, desenvolve a ideia de uma Igreja celeste que foi criada já no início da criação; portanto, a criação do ser humano como homem e mulher (Gn 2,24; Ef 5,32) representa respectivamente Cristo e a Igreja.

Também o Pastor de Hermas (vis. 2,42) apresenta a Igreja como originada antes da lua e do sol, e tudo foi criado em vista dela. Assim, os escritos do cristianismo primitivo, dirigidos sempre para comunidades concretas, englobam suas exortações práticas em favor da humanidade e de uma vida moralmente correta no âmbito das especulações transcendentes sobre uma Igreja preexistente à qual estão unidas as comunidades concretas e também cada crente. A imagem paulina do corpo (1Cor 12,12-27) aparece já no âmbito cultural helenístico para descrever diversos tipos de associações, mas as consequências teológicas que daí se iram para se referir à Igreja no paraíso e à Igreja de Abel, que está presente tanto na comunidade local quanto na alma de cada crente, é exclusivamente cristã. Segundo o pensamento do cristianismo primitivo, existe uma Igreja sobre a terra desde a criação do homem (ecclesia in paradiso) ou, no máximo, começando pela oposição entre Caim e Abel (ecclesia ab Abel); a Igreja preexistente no céu se corporifica na terra quando o homem criado por Deus é chamado à felicidade gloriosa, canta a Deus no paraíso, ou durante toda a descendência de Abel, o mesmo hino de glória cantado pelo coro dos anjos do céu.

b. Escatologia – De modo semelhante a tudo quanto acontece para a preexistência da Igreja, a primitiva escatologia cristã colocou também em relação a esperança na segunda vinda de Cristo com a plenitude salvífico-escatológica da Igreja terrena. Essa visão escatológica se exprime no pensamento da carência da pátria (1Pd 1,1), própria da Igreja articulada em comunidades locais. A Prima Clementis é uma carta dirigida, “da Igreja de Deus que vive em Roma entre estranhos”, para a “Igreja de Deus que vive em Corinto entre estranhos” (1 Clem. 1,1). Destacada deste mundo e unida vitalmente a Cristo, a Igreja está a caminho para “sua destinação verdadeira” (1 Clem. 63,1), que é a plenitude do Reino de Deus.

Também a autoconsciência de “eleição”, pela qual os κλητοι ou “chamados” (1 Clem. 1,1) de uma comunidade consideram a si mesmos εκκλησια, é formulada escatologicamente, porquanto o chamado comum é expressão da vontade salvadora de Deus, o qual confere assim à vida comunitária de uma Igreja local o caráter de necessidade de salvação eterna.

A visão escatológica da Igreja, que viaja neste mundo como pelo mar e que, ao mesmo tempo, já o deixou atrás de si porque ancorada no céu (é barca e porto, em peregrinação e já em casa), será talvez utilizada pelos Padres da Igreja de todos os séculos e explicada de maneira renovada com toda a espécie de imagens, vivas e penetrantes.

c. Aspectos cosmológicos – Também a perspectiva cosmológica da cristologia teve um aspecto eclesiológico nos escritos tardios do NT. Como a redenção da criação depende de Cristo como sua cabeça, assim também a ressurreição dos elementos físicos está ligada à plenitude da Igreja; no fim dos tempos, a barca do mundo se transformará em barca da Igreja, a única que se salvará do afundamento. O mundo, tendo sido criado pensando na Igreja, terminará quando a Igreja tiver alcançado sua meta. Recolhendo esta série de imagens surgida no cristianismo primitivo, no século III Hipólito escreverá: “Mas para tudo o que se refere à barca, isto é, ao dato de que navegou para as quatro direções do mundo e depois voltou para leste, eu o interpreto como uma referência à cruz, e a arca (isto é, a barca) é Cristo aguardando. Mas aquela arca foi a salvação de Noé, de seus filhos, de seus animais domésticos, dos animais e dos pássaros selvagens; Cristo morreu por nós na cruz e nos salvou de satanás e do pecado, e nos resgatou em seu sangue puro” (fragmento 4 In Gn. 8, 1). Na arca da Igreja, armada como a árvore da cruz, não se salvam só Noé e os seus, mas toda a criação é conduzida para a montanha do leste ou oriente, isto é, para a plenitude eterna.

Em todas as imagens ou metáforas empregadas para interpretar teologicamente a Igreja está presente a dialética entre a Igreja, que é mas do que a soma de seus membros, e a Igreja que é formada somente por estes. A Igreja não é nem o indivíduo nem a soma dos indivíduos; e certamente a Igreja não é um conceito abstrato independente dos crentes, porque só na alma de cada crente se realiza a união do Logos Cristo com sua esposa, a Igreja.

2. A IGREJA COMO MISTÉRIO DIVINO E COMO INSTITUIÇÃO HUMANA.

Na literatura patrística a Igreja é continuamente apresentada como um grandioso mistério no qual Deus age de maneira salvífica e universal (sancta ecclesia catholica). Os Padres da Igreja servem-se de uma rica simbologia bíblica e histórico-religiosa para mostrar a identidade sacramental desse mistério divino com a concreta Igreja histórica e dar assim fundamento a sua importância universalmente salvífica: Igreja como esposa e corpo de Cristo, como ecclesia ab Abel, como arca que salva do pecado, como virgem e mãe, como casa, cidade e templo de Deus construídos com pedras vivas. A Igreja é entendida, portanto, já desde os inícios da teologia patrística como a comunidade (κοινωνια, communio) dos crentes em Cristo que, cheios do Espírito Santo, estão unidos entre si pelo amor do Pai.

Além disso, as primeiras estruturas institucionais (apostolado, episcopado, presbiterato, diaconato, sínodos episcopais) e a reflexão teológica sobre elas permitiram identificar claramente a verdadeira ecclesia apostólica, distinguindo-a dos grupos cismáticos e heréticos; por isso, foram estabelecidas noções e princípios teológicos como a regula fidei, as confissões batismais da fé, o cânon da Sagrada Escritura, o vínculo da celebração eucarística e da tradição normativa da fé, reservados aos dirigentes das comunidades cristãs, normas precisas sobre os serviços religiosos, normas de excomunhão e de reconciliação, as celebrações de sínodos episcopais que reforçavam a κοινωνια ou communio das várias comunidades locais, a importância das sedes apostolicae, sobretudo a de Roma.

Estes dois aspectos da Igreja, entendida como comunidade salvífica e como instituição salvífica, não foram apresentados pelos Padres da Igreja como antagônicos, mas sobretudo como intimamente complementares. A tese compartilhada por todos, de que “fora da Igreja não há salvação” (formulada de maneira explícita por Cipriano, Ep. 73,21: salus extra ecclesiam non est), não diz que a Igreja é a instância portadora de salvação em força de sua única dimensão histórico-institucional, mas que o é em virtude de sua união com Cristo. Pois bem, a possibilidade de que surgisse tensão radical entre o anúncio salvífico e a instituição eclesiástica não se colocou e não foi discutida por parte da teologia patrística; foi apenas discutida dentro do movimento montanista (século II), do novacianismo (século III) e do donatismo (século IV).

Os outros grupos religiosos da Antiguidade, exceto os hebreus, dotados de autoconsciência de povo escolhido por Deus, não desenvolveram uma descrição teológica de si mesmos como fizeram os cristãos. Um pequeno grupo como era na realidade da Igreja dos séculos I e II, que realizava modestos serviços religiosos e que, na sociedade do Império Romano, progredia com muito esforço, entre incompreensões e verdadeiras perseguições, atribuía si mesmo na interpretação teológica uma posição que abrangia todas as dimensões temporais e espaciais, apresentando-se como o único lugar do encontro com Deus e da mediação salvadora. Inácio de Antioquia, por exemplo, para o conceito de tipologia, chegou a elevar a comunidade particular à altura da Igreja universal: καϑολιχη εκκλησια (Smyr. 8,2).

3. IGREJA COMO SPONSA E COMO MATER.

A imagem da Igreja como esposa (sponsa) encontro pleno desenvolvimento acima de tudo na teologia oriental. Orígenes preferia usá-la para descrever tanto a relação da Igreja com Cristo quanto a relação do crente com a Igreja. Aviltada pelo pecado de muitos crentes, a Igreja, segundo Orígenes, poderia ver-se privada da pureza de sua origem e, se não fosse a esposa sem mancha nem ruga escolhida por Cristo (Ef 5,27), deixaria de ser inteiramente a Igreja. Por isso, Orígenes procura homens capazes de viver esponsalmente, cuja única preocupação seja o Senhor; eles são as almas eclesiásticas, nas quais se manifesta a essência da Igreja como a esposa que persevera inabalavelmente fiel ao Senhor. Orígenes não desenvolveu esse aspecto de sua eclesiologia como uma dedução abstrata e teórica, partindo de pressupostos dogmáticos sobre a essência da Igreja, mas no contexto de sua interpretação espiritual da Bíblia, sobretudo do Cântico dos Cânticos.

Segundo Orígenes (Comm. in Cant. 1), a esposa do Cântico dos Cânticos tem duplo significado tipológico: enquanto o esposo representa só Cristo, a esposa representa a Igreja ou a alma do crente (ecclesia vel anima), mas não no sentido de uma dupla interpretação (como se às vezes a esposa fosse referida à Igreja como instituição comunitária e ouras vezes como cristão individual), mas no sentido de que na alma do crente vive a Igreja, ao passo que o cristão só pode existir com a Igreja. Orígenes não separa a santidade pessoal da santidade eclesial, porque a alma perfeita, entendida como anima eclesiástica, é o núcleo mais íntimo do corpus Ecclesiae, que é a esposa de Cristo. Para os homens que se esforçam por alcançar a plenitude, a Igreja é já aqui na terra – sem necessidade de aguardar o futuro escatológico – a Igreja santa. Ela não é aérea ou espiritualizada, mas sim visível e experimentável exatamente no ponto decisivo da santidade, que pode entender-se também como a libertação dos pecados trazida por Cristo. A santidade do crente é a ausência da mancha e de rugas da Igreja esposa. Ao mesmo tempo, a ideia de uma Igreja apresentada ao crente como sua mãe é estranha ao pensamento teológico de Orígenes.

A imagem da Igreja como mãe, não obstante, permeia fortemente a eclesiologia ocidental desde seu início. Tertuliano fala de “domina mater Ecclesia” (Mart. 1,1), que se apresenta aos neobatizados quando elevam as mãos para orar (Bapt. 20,5), e que se ocupa com o cuidado de fazê-los viver de acordo com sua disciplina. Em Cipriano essa percepção de Igreja se torna mais profunda. A Igreja, porquanto mãe, é abençoada com uma feliz fecundidade (Cipriano, Hab. Virg. 5); só ela oferece a salvação divina, e quem dela se separa não pode viver nem respirar (ibid. 3). Cipriano afirmou várias vezes que ninguém pode ter Deus como Pai se não tem a Igreja como mãe (Ibid., Ep. 4,7). Ele se serviu dessa imagem para expor a unidade da Igreja perante os grupos cismáticos e heréticos.

Essa imagem da Igreja como mãe, desenvolvida pela Igreja norte-africana no século III, foi retomada pela Igreja ocidental porque se ajustava bem à importância com a qual a Igreja romana valorizava a ordem e o direito e servia, além do mais, como completamento da estrutura paterna dos encargos eclesiásticos. Não sem razão o papa João XXIII, já além da metade do século XX, deu sua encíclica o título de  Mater et magistral, não Virgo et sponsa; isso corresponde a sua visão da Igreja do Ocidente, preocupado, sobretudo, em acentuar a função normativa do magistério.

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